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Um retrato “humano” da comunidade cigana nos EUA, nos anos 90

Entre 1990 e 93, a fotojornalista luso-americana Cristina Klenz acompanhou dezenas de famílias da comunidade cigana da Califórnia, EUA. Trinta anos depois, o recém-editado fotolivro Hidden é um documento com valor histórico. "Muitas das situações que vemos retratadas são resultado da discriminação e perseguição sofrida, há séculos, por esta minoria."

A Fumar, South Gate, 1991 (Xoraxay) "Fumar cigarros era uma causa de doença comum entre a comunidade, nos anos 1990 - começavam a fumar cedo. Este rapaz tem 12 anos." ©Cristina Klenz
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A Fumar, South Gate, 1991 (Xoraxay) "Fumar cigarros era uma causa de doença comum entre a comunidade, nos anos 1990 - começavam a fumar cedo. Este rapaz tem 12 anos." ©Cristina Klenz

Foi no caminho entre Porto e Braga, na companhia da sua avó e tia-avó, que a fotojornalista Cristina Klenz fotografou, pela primeira vez, a comunidade cigana. "Tinha 20 anos", recorda, em conversa com o P3, a partir dos Estados Unidos. "Vimos pessoas a viver num dos lados da estrada e eu quis aproximar-me, conhecê-las e fotografá-las." Assim fez. "As pessoas eram muito bonitas, tinham personalidades incríveis, extrovertidas, vivazes. As crianças eram radiantes, embora vivessem numa situação muito precária, em barracas feitas de madeira e metal. Tinham cobertores no chão, cozinhavam numa fogueira, no exterior, e lavavam loiça em bacias. Não tinham acesso a água canalizada, a saneamento básico ou às comodidades que já eram comuns para a maioria das pessoas, em Portugal."

Ao longo do Verão de 1984, Cristina, natural da cidade do Porto, visitou várias vezes o acampamento e estreitou laços com a comunidade, mas o regresso aos Estados Unidos ditou o seu afastamento. "Regressei a Portugal nos anos seguintes e, com ajuda da minha avó, encontrei uma nova comunidade em Francelos, em Vila Nova de Gaia." Entre 1986 e 1990, sempre que podia, a fotógrafa documentava o quotidiano das famílias. "Deixaram-me tão intrigada que as procurei em todos os lugares onde vivi, nos Estados Unidos. Procurava-as junto às estradas, em descampados, como acontecia em Portugal, mas nunca as encontrava. 'Onde estão?', perguntava-me. 'Porque não as encontro?'"

Foi um colega fotojornalista do jornal Long Beach Press-Telegram quem disse à luso-americana que as pessoas de etnia cigana que viviam nos Estados Unidos já residiam em casas ou apartamentos há alguns anos. Cristina localizou uma família num bloco de apartamentos na Califórnia e decidiu abordá-la — e esta foi a primeira incursão no universo das comunidades ciganas naquele estado norte-americano; e o primeiro passo no sentido da elaboração do fotolivro Hidden: Life with California's Roma Familiespublicado recentemente, 30 anos depois da recolha de imagens, pela editora Brown Paper Press. "Essa família deixou-me fotografar as crianças, apenas", relembra. Insatisfeita, Cristina procurou novas formas de mergulhar no quotidiano das comunidades: procurou novas famílias e, lentamente, foi sendo aceite por elas.

No terreno, a fotógrafa conheceu e privou com famílias ciganas de cinco subgrupos diferentes: churara, kalderash (o mais numeroso nos EUA), ludar e machvaya, que são oriundos do leste europeu, nomeadamente da Roménia, Moldávia e Sérvia; e o grupo xoraxay, que é de origem turca. Na opinião de Klenz, os valores e modos de vida dos diferentes grupos eram muito semelhantes. "Os laços familiares são centrais", afirma. "Assim como o respeito pelas suas regras culturais. Garantir que os seus valores e tradições se sobrevivam à passagem do tempo é algo muito importante para todos."

O único grupo tinha um estilo de vida muito diferente dos demais era o dos ludar. "Os ludar viviam num trailer park, no condado de Riverside. Não são bem aceites por outros grupos, na Califórnia; alguns não os consideram ciganos. As mulheres usavam calças, dedicavam-se à carpintaria e vendiam mobília porta a porta." Os xoraxay também eram mais tradicionais do que os restantes na forma de vestir, refere a fotógrafa. "Tinham imigrado recentemente para os Estados Unidos vindos do Chile e da Colômbia. Falavam romani fluentemente."

Cristina Klenz demorou 30 anos a publicar o livro. As imagens descrevem o que muitos poderão encarar um reforço de estereótipos relativamente a esta minoria étnica e a fotógrafa está ciente desse facto. "Devo dizer que tive muitas dúvidas antes de publicar o livro", confessa. "Demorei 30 anos a decidir se incluía certas imagens e o meu coração esteve muito indeciso. Mas senti que era importante incluí-las. Elas descrevem o estilo de vida deste grupo, mas também descrevem as dificuldades que enfrentam, que resultam da pobreza que se vive nos Estados Unidos e a pobreza infantil era muito mais grave nessa época do que é hoje."

Cristina não deseja "que se pense que todas as pessoas de etnia cigana são iguais" e considera que Hidden é um "retrato de humanidade". Ressalva que as imagens devem ser lidas tendo em conta a época em que foram produzidas, ou seja, entre os anos 1990 e 1993. Muita coisa mudou, entretanto, embora considere que a comunidade cigana continue a viver em exclusão, na Califórnia e nos Estados Unidos da América, em geral. "As crianças já vão à escola, por exemplo", refere. "Nos anos 90, quase todas as pessoas de etnia cigana que conheci eram analfabetas. Não conseguiam preencher um formulário, ler, tirar a carta." Também não tinham acesso a cuidados médicos, "algo que mudou radicalmente com a introdução do Obamacare".

O fotolivro Hidden é, nas palavras de Cristina, um "documento histórico" sobre a vida da comunidade cigana na Califórnia. "Muitas das situações que vemos retratadas são resultado da discriminação e perseguição sofrida, há muitos séculos, por esta minoria. Eu quero mostrar que estas pessoas sofriam e continuam a sofrer, hoje, com a forma como são tratadas por todos." Cristina lança uma questão que considera pertinente: "Como esperamos que estas pessoas se tratem mutuamente quando toda a gente as maltrata?"

Klenz, que dedica parte do seu tempo à educação de crianças como necessidades especiais, mantém-se em contacto com muitas das comunidade que retratou. "Estou a preparar um novo capítulo", anuncia. "Há muitas pessoas [que retratei] que já faleceram ou mudaram de estado. É curioso como, de alguma forma, eu tornei-me numa espécie de arquivo fotográfico das comunidades. Muitas pessoas que não tinham nenhuma fotografia da sua infância, ou dos seus familiares, ficam emocionadas ao vê-las pela primeira vez."

Salto alto, El Monte, 1992 (Xoraxay)
Salto alto, El Monte, 1992 (Xoraxay) ©Cristina Klenz
“The Hulk,” Sacramento, 1993 (Kalderash)
“The Hulk,” Sacramento, 1993 (Kalderash) ©Cristina Klenz
Brincando aos Adultos, Long Beach, 1990 (Kalderash). "Orgulhosas das suas raízes, a mãe da menina, em conjunto com a sua cunhada, tranformaram-na numa 'mulher cigana', vestindo-a com trajes da família e materiais coloridos que recolheram da sala de estar.  Porque muitas mulheres fumam, elas também lhe deram um cigarro para completar o figurino." A mãe da menina criou um visual diferente para a filha que pode ser visto na imagem 17.
Brincando aos Adultos, Long Beach, 1990 (Kalderash). "Orgulhosas das suas raízes, a mãe da menina, em conjunto com a sua cunhada, tranformaram-na numa 'mulher cigana', vestindo-a com trajes da família e materiais coloridos que recolheram da sala de estar. Porque muitas mulheres fumam, elas também lhe deram um cigarro para completar o figurino." A mãe da menina criou um visual diferente para a filha que pode ser visto na imagem 17. ©Cristina Klenz
Tatuagem Ranchero, Los Angeles Leste, 1992 (Xoraxay)
Tatuagem Ranchero, Los Angeles Leste, 1992 (Xoraxay) ©Cristina Klenz
Mãe e filha, Long Beach, 2003 (Grèkurja)
Mãe e filha, Long Beach, 2003 (Grèkurja) ©Cristina Klenz
À venda, Burbank, 1991 (Kalderash) "Uma família é retratada no interior do carro que tenta vender. Muitos dos homens Kalderash trabalham no ramo da venda e conserto de automóveis usados."
À venda, Burbank, 1991 (Kalderash) "Uma família é retratada no interior do carro que tenta vender. Muitos dos homens Kalderash trabalham no ramo da venda e conserto de automóveis usados." ©Cristina Klenz
Matriarca, Van Nuys, 1992 (Machvaya). "Um ano antes da morte [da matriarca], a sua família, residente no Vale de San Fernando, pediu-me para lhe fazer um retrato. Vestida em trajes tradicionais, ela posicionou uma grande cadeira em forma de trono perto de uma parede e sentou-se. Hoje, uma versão a cores desta fotografia está na sua lápide, em Louisiana."
Matriarca, Van Nuys, 1992 (Machvaya). "Um ano antes da morte [da matriarca], a sua família, residente no Vale de San Fernando, pediu-me para lhe fazer um retrato. Vestida em trajes tradicionais, ela posicionou uma grande cadeira em forma de trono perto de uma parede e sentou-se. Hoje, uma versão a cores desta fotografia está na sua lápide, em Louisiana." ©Cristina Klenz
Trabalhadora migrante reformada, Riverside County, 1992 (Ludar)
Trabalhadora migrante reformada, Riverside County, 1992 (Ludar) ©Cristina Klenz
Cowboy, Long Beach, 1992 (Kuneshti)
Cowboy, Long Beach, 1992 (Kuneshti) ©Cristina Klenz
Camionista, Lakewood, 1991 (Machvaya). "Uma figura popular na comunidade, que tem a alcunha de Camionista, celebra o seu 52º aniversário num parque com barbeque. Entre os Machvaya e os Kalderash, é costume oferecer dinheiro em vez de presentes. Nesta imagem, o Camionista partilha algum do dinheiro que recebeu com um amigo."
Camionista, Lakewood, 1991 (Machvaya). "Uma figura popular na comunidade, que tem a alcunha de Camionista, celebra o seu 52º aniversário num parque com barbeque. Entre os Machvaya e os Kalderash, é costume oferecer dinheiro em vez de presentes. Nesta imagem, o Camionista partilha algum do dinheiro que recebeu com um amigo." ©Cristina Klenz
Arma, El Monte, 1992. "O menino assusta-se quando o seu pai dispara uma arma durante uma festa."
Arma, El Monte, 1992. "O menino assusta-se quando o seu pai dispara uma arma durante uma festa." ©Cristina Klenz
Saxofonista, Condado de Riverside, 1992 (Ludar)
Saxofonista, Condado de Riverside, 1992 (Ludar) ©Cristina Klenz
Contabilizando, Laughlin, Nevada, 1992 (Machvaya). "Este grupo de Machvaya, em conjunto com a mãe do noivo, contam o dáro, que foi colocado no interior de um pão. O dáro é oferecido ao casal, para que possa começar a sua vida, e para os pais do novo para abater no custo do casamento."
Contabilizando, Laughlin, Nevada, 1992 (Machvaya). "Este grupo de Machvaya, em conjunto com a mãe do noivo, contam o dáro, que foi colocado no interior de um pão. O dáro é oferecido ao casal, para que possa começar a sua vida, e para os pais do novo para abater no custo do casamento." ©Cristina Klenz
Coroa da noiva, Monrovia, 1992 (Kalderash). "Uma jovem noiva casa-se num salão muito usado por outros romani. Na tradição Kalderash, um casal mais velho é designado para atribuir a coroa à noiva. Este ritual, mais do que qualquer documento legal, é que torna oficial o casamento, tornando a noiva numa esposa e nota (bori)."
Coroa da noiva, Monrovia, 1992 (Kalderash). "Uma jovem noiva casa-se num salão muito usado por outros romani. Na tradição Kalderash, um casal mais velho é designado para atribuir a coroa à noiva. Este ritual, mais do que qualquer documento legal, é que torna oficial o casamento, tornando a noiva numa esposa e nota (bori)." ©Cristina Klenz
Noiva, San Jose, 1992 (Kuneshti). "Noiva adolescente posa na sua casa no dia do seu casamento. Ela entrou no salão num vestido vermelho, símbolo da sua virgindade, e depois trocou para o seu vestido de noiva, para a cerimónia."
Noiva, San Jose, 1992 (Kuneshti). "Noiva adolescente posa na sua casa no dia do seu casamento. Ela entrou no salão num vestido vermelho, símbolo da sua virgindade, e depois trocou para o seu vestido de noiva, para a cerimónia." ©Cristina Klenz
Guitarrista, Van Nuys, 1991 (Kuneshti)
Guitarrista, Van Nuys, 1991 (Kuneshti) ©Cristina Klenz
Brincando aos Adultos, Long Beach, 1990 (Kalderash). "Orgulhosas das suas raízes, a mãe da menina, em conjunto com a sua cunhada, tranformaram-na numa 'mulher cigana', vestindo-a com trajes da família e materiais coloridos que recolheram da sala de estar.  Porque muitas mulheres fumam, elas também lhe deram um cigarro para completar o figurino." A mãe da menina criou um visual diferente para a filha que pode ser visto na imagem 4.
Brincando aos Adultos, Long Beach, 1990 (Kalderash). "Orgulhosas das suas raízes, a mãe da menina, em conjunto com a sua cunhada, tranformaram-na numa 'mulher cigana', vestindo-a com trajes da família e materiais coloridos que recolheram da sala de estar. Porque muitas mulheres fumam, elas também lhe deram um cigarro para completar o figurino." A mãe da menina criou um visual diferente para a filha que pode ser visto na imagem 4. ©Cristina Klenz
Galo de estimação, Paramount, 1991 (Xoraxay)
Galo de estimação, Paramount, 1991 (Xoraxay) ©Cristina Klenz
Crianças, Braga, Portugal, 1984 (Calé)
Crianças, Braga, Portugal, 1984 (Calé) ©Cristina Klenz
Capa do fotolivro "Hidden: Life with California's Roma Families", da fotojornalista portuguesa Cristina Klenz, editado pela Brown Paper Press, 2022
Capa do fotolivro "Hidden: Life with California's Roma Families", da fotojornalista portuguesa Cristina Klenz, editado pela Brown Paper Press, 2022