Sinto-me ajudado

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Actualmente, poucas coisas são mais qataris do que estas barreiras de metal DCO

Ajudar. Verbo transitivo. Contribuir para que outrem faça alguma coisa. Coordenar. Verbo transitivo. Dispor segundo uma certa ordem, de modo a atingir um fim determinado. Controlar. Verbo transitivo. Ter sob o seu domínio, sob a sua vigilância.

Três conceitos diferentes, mas um pouco baralhados no Mundial 2022. Em Doha, a organização do Campeonato do Mundo faz questão de ajudar/coordenar/controlar os visitantes e jornalistas nos seus percursos — dos passeios profissionais aos de lazer. No fundo, auxiliar quem não é de cá, manter tudo dentro da ordem e mostrar que há, a nível organizacional, um Mundial de primeiro nível. E, reconheçamos, há mesmo.

Dificilmente alguém anda 50 metros sem ter um polícia, um funcionário local ou um voluntário a indicar-lhe por onde deve ir – e 50 metros é ser “mãos largas” na estimativa.

Estas pessoas, que ajudam/coordenam/controlam, têm até bastões luminosos para apontar e iluminar o caminho e muitos têm mãos gigantes insufláveis, com um dedo em riste a mostrar a direcção que eu quero seguir. Mas qual caminho? E qual direcção? Eles, os que ajudam/coordenam/controlam, não sabem, mas sabem que é por ali.

This way, please [por aqui, por favor]” deve ter sido a frase que mais ouvi desde que cheguei a Doha, há quatro dias. Para andar na rua, entrar numa estação, sair de uma estação, entrar num estádio ou qualquer outro local, há sempre alguém que ajuda/coordena/controla. Chega até a ser bizarro o número de funcionários e voluntários que não estão a fazer rigorosamente nada durante todo o dia. Estão só ali. A estar. E a ajudar/coordenar/controlar.

Ao dirigir-me ao FIFA Fan Festival, na zona nova da cidade de Doha, saí na estação de metro anterior à que era suposto. “Bom, vou a pé, que é já ali”, pensei, antes de ser encaminhado para uma fila por um dos que ajudam/coordenam/controlam.

“Mas porquê fila, se ainda tenho de andar um bom bocado? Isto é para quê?”, pensei para mim. Percebi, depois, que era fila para o autocarro que levaria as pessoas ao destino, que ficava uns 500 metros mais à frente, em linha recta e com o destino na mira.

Saí da fila sempre bem montada, como todas, por barreiras de metal em formato labiríntico e quis ir por dentro dos trilhos do parque. Até ser interpelado por alguém – um dos tais que ajudam/coordenam/controlam.

— Por aqui, senhor.
Mas essa fila é para quê?
Autocarro Fan Festival. A fila é por ali.
Mas eu não quero ir de autocarro.
Mas autocarro é melhor.
Eu prefiro ir a pé, obrigado.

De facto, deveria ter ido de autocarro, que uma pré-bolha no dedo virou bolha a sério. Tirando isso, a opção de ir a pé, contrariando os que ajudam/coordenam/controlam, até acabou por ser divertida.

A seguir a procissão dos que quiseram ir a pé, senti-me num cenário bizarro. Funcionários a cada 20 metros a balizarem a fila indiana de pessoas, numa zona de estrada larga e parque com diversos trilhos. “Mas o que é isto? Vou a caminho da via-sacra? Deixa lá ver o que acontece se sair daqui”, desafiei-me, fitando aqueles que ajudam/coordenam/controlam.

This way, sir”, disparou um dos funcionários que ajudam/coordenam/controlam e não se esqueceu da luz e da luva gigante , dando até um passo atrás na sua colocação estratégica. Giro, giro. Regressei à fila, mas testei o funcionário seguinte, uns metros depois, e repeti a ousadia suprema de sair da fila, para tentar irromper pelo parque.

Ninguém disse nada. Uau! Afinal, era mais livre do que pensava. Ou talvez não, que a zona para onde fui, que nem aventureiro florestal, tinha... uma barreira não era humana, das que ajudam/coordenam/controlam, mas era de metal, que também ajuda/coordena/controla.

No mesmo dia, mas à vinda para casa, decidi ir de autocarro. Eram 16 passageiros e seis funcionários, o que dá uma média divertida de mais de três passageiros para cada funcionário.

Pode ter sido uma casualidade naquela carreira específica e naquela hora do dia? Pode. E por isso é que, em Doha, não me sinto apenas controlado e coordenado, também me sinto ajudado.

Três mil e novecentos caracteres depois, falei de ajuda, de coordenação ou de controlo?

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