Mudarmos a cabeça por dentro é difícil, mas o exemplo faz milagres

A mãe fez um bom trabalho em termos de igualdade de género, porque quando me deparei com esta tarefa senti uma certeza absoluta de que seria tão capaz de a cumprir como qualquer homem.

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"Tendo em conta que aos 62 anos ainda não mudei um pneu, podes considerar os teus 36 anos como um estrondoso avanço geracional" @designer.sandraf

Querida Mãe,

É com muito orgulho, e talvez com um bocadinho de vergonha, que lhe posso anunciar que (só) aos 36 anos mudei pela primeira vez um pneu.

Enquanto fazia o macaco subir reflecti sobre várias coisas que queria partilhar consigo.

A primeira é que gostava de receber um macaco no Natal! Este é péssimo.

A segunda é que o meu marido não é machista porque quando lhe liguei a perguntar se achava que eu conseguia mudar o pneu, disse com convicção: “Claro que sim!” Essa confiança foi fundamental para o sucesso da operação.

A terceira é que a mãe fez um bom trabalho em termos de igualdade de género, porque quando me deparei com esta tarefa senti uma certeza absoluta de que seria tão capaz de a cumprir como qualquer homem.

A quarta, e a mais importante, é que reparei que a parte mais difícil não foi o esforço físico de mudar o pneu, mas sim o de guiar logo a seguir. Custava-me acreditar que pudesse ter feito aquilo bem o suficiente. Estive sempre à espera que a roda caísse, o que me pôs a pensar que a educação entre géneros não é tanto ensinar esta ou aquela tarefa, mas conseguir que acreditem nas suas capacidades. Eliminando aquela dúvida de que, se calhar, o outro sexo a desempenharia melhor do que nós e que por isso nem vale a pena tentar.

Ora o que esta “lógica” descarta é o facto de que ninguém se torna bom a qualquer coisa sem treinar. E só se ganha confiança de que se está a fazer bem, se o repetirmos muitas vezes. O mais distorcido desta crença é que nem é preciso alguém tirar-nos o lugar... porque nós, mulheres, nem sequer nos vamos candidatar a ele. Moral da história: já mudou um pneu mãe? Quer experimentar?


Querida Ana,

Surpreendentemente tenho imensas coisas dizer sobre este assunto. Vamos por partes.

Primeiro, tendo em conta que aos 62 anos ainda não mudei um pneu, podes considerar os teus 36 anos como um estrondoso avanço geracional — o mundo está a ficar um lugar melhor, apesar de às vezes ser difícil acreditar.

Segundo, lamento informar-te, mas andam a roubar-nos a possibilidade de nos doutorarmos nesta área porque os novos carros, vá-se lá saber porquê, já não têm pneu sobresselente, e é preciso mandar rebocá-los para a oficina. É a coisa mais estúpida que já se viu, custa caro e é uma perda de tempo, mas já fui dela vítima várias vezes, o que me leva a também fazer-te um pedido de Natal: juntem-se para me oferecer um pneu, quero lá saber que ocupe muito espaço na mala.

Terceiro, a divisão de tarefas. A tua história lembrou-me um debate em que estive com o Dr. Bagão Félix, há muitos, muitos anos, em que revelou que não entrava na cozinha desde os primeiros tempos de casado porque uma vez fritara iscas com a película de papel e a mulher considerara-o inapto para a culinária.

Quando chegou a minha vez de falar não resisti: li alto o extenso currículo e perguntei-lhe se acreditava realmente que alguém capaz de uma carreira tão brilhante como a dele, à segunda tentativa não teria conseguido desenvencilhar-se melhor. Pus mesmo a hipótese de ter sido um golpe brilhante para se livrar dos tachos e das panelas de uma vez por todas.

Como tem sentido de humor, riu-se, mas parece-me que, nesse tempo, acreditava mesmo que isto de saber fritar iscas ou mudar pneus estava intimamente ligado ao cromossoma X e Y.

Mudarmos a cabeça por dentro é difícil, mas o exemplo faz milagres. Parabéns e tenho a certeza de que à conta do teu feito há pelo menos mais três raparigas que vão recusar o preconceito.


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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