Países do Mediterrâneo querem usar energias renováveis para atrair investimento

“Queremos lembrar ao mundo que somos uma das regiões mais afectadas pelas alterações climáticas”, disse o secretário-geral da União para o Mediterrâneo, para explicar porque esteve o grupo na COP27.

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Projecto de energia fotovoltaica no Parque Solar Benban, em Assuão, no Egipto KHALED ELFIQI/EPA

As alterações climáticas já fizeram com que a temperatura média anual na bacia do Mediterrâneo seja 1,54 graus mais alta do que nos tempos anteriores à Revolução Industrial – limite a partir do qual os cientistas consideram que começam a registar-se efeitos verdadeiramente perigosos (mais 0,4 graus do que a média global). “É uma região que já está a ver as consequências das alterações climáticas”, afirmou ao PÚBLICO Nasser Kamel, secretário-geral da União para o Mediterrâneo (UPM).

Pela primeira vez, a UPM teve um pavilhão próprio na Cimeira do Clima das Nações Unidas, na COP27, em Sharm el-Sheikh, no Egipto. “Queríamos fazer lobby a toda a comunidade internacional, sim, queríamos lembrar ao mundo que somos uma das regiões mais afectadas pelas alterações climáticas”, declarou Kasser Kamel, um diplomata egípcio que dirige a organização intergovernamental de 42 membros, criada em 2008, que agrupa os Estados da União Europeia, incluindo Portugal, com os da margem sul do Mediterrâneo.

Mas o pavilhão na COP27 serviu também para mostrar o que está a ser feito na região para enfrentar as alterações climáticas. “Quisemos mostrar as diferentes abordagens e novas soluções que estamos a desenvolver, explicar a nossa posição relativamente ao financiamento climático, o que estamos a fazer em termos de tecnologia, no nexo científico alimentação-água, a importância que a dieta mediterrânica tem como modelo de sustentabilidade”, explicou Nasser Kamel.

O diagnóstico é sombrio. “Todos vimos no Verão passado que houve um nível de incêndios florestais sem precedentes, tanto no Norte como no Sul do Mediterrâneo: França, Espanha, Argélia, com perda de vidas. Vimos inundações repentinas em tantos países, a seca a provocar falta de água. Por exemplo, o Norte de Itália declarou uma emergência, o Norte!”, disse Kamel, a partir do seu gabinete em Barcelona, onde fica a sede da UPM, numa entrevista por videoconferência.

Um estudo financiado pela UPM e pelo Programa de Ambiente das Nações Unidas, conduzido por uma rede de mais de 500 cientistas, denominada Especialistas do Mediterrâneo sobre Alterações Climáticas e Ambientais (MedECC, na sigla em inglês), publicou o seu primeiro relatório em 2020, e continua a recolher dados, com o objectivo de publicar actualizações a cada dois a três anos, disse Kamel.

O estudo concluía que “o futuro aquecimento médio regional [no Mediterrâneo] vai exceder a média global em 20% numa base anual e 50% no Verão”. Dava ainda como “virtualmente certo que o aquecimento das águas de superfície do Mediterrâneo vai continuar durante o século XXI, alcançando entre um e quatro graus”, consoante a evolução das emissões de gases com efeito de estufa.

“O nível do mar subiu já seis centímetros durante os últimos 20 anos e pode chegar a um metro em 2100 este é um cenário catastrófico se não aplicarmos o Acordo de Paris, espero que o consigamos evitar”, frisa Nasser Kamel.

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Nasser Kamel: "Quisemos mostrar as diferentes abordagens e novas soluções que estamos a desenvolver na região do Mediterrâneo" ainhoa goma

Mas já hoje o Mediterrâneo enfrenta uma grande escassez de água. “No Sul do Mediterrâneo, temos muita falta de água e arriscamo-nos a perder 20% dos nossos recursos por causa das alterações climáticas”, recorda Nasser Kamel. “No Mediterrâneo pode haver 37 milhões de deslocados se a água do mar subir acima de um certo nível. A salinização de terras agrícolas férteis vai aumentar”, relata.

Atrair recursos

Às vezes usamos o exemplo de Alexandria, porque é a cidade mais populosa no Mediterrâneo, com oito a nove milhões de habitantes. Mas, para ser honesto, Alexandria é uma das cidades que já começaram a proteger-se, construindo protecções. Mas [o ex-primeiro-ministro britânico] Boris Johnson usou Alexandria como um exemplo no ano passado [na Cimeira do Clima em Glasgow, dizendo que podia desaparecer por causa da subida do nível do mar], e até o Governo egípcio a usou este ano durante a COP27”, conta Nasser Kamel.

“A região do Mediterrâneo tem beneficiado bastante no que diz respeito aos recursos disponibilizados pelas instituições financeiras internacionais, sector privado e outros, em tudo o que tenha que ver com sustentabilidade ou adaptação ou mitigação”, avançou Nasser Kamel. Dá o exemplo de uma nova parceria para a economia azul, que foi lançada na COP27, que resulta da cooperação entre a UPM, o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD) e o Banco Europeu de Investimento.

“Isto na verdade começou no meu escritório, há uns meses, quando um jovem e dinâmico director da divisão de economia azul do BERD me disse: ‘Porque é que não pensamos em iniciar um fundo como o que foi feito há mais de 15 anos para o mar Báltico, que levou a uma redução de 60% da poluição por fosfatos?’”, recordou o secretário-geral da UPM.

“Começamos a falar com as agências para o desenvolvimento de França e Espanha, com o Banco de Desenvolvimento da Alemanha e com os países que poderiam beneficiar da iniciativa para ajudar a lidar com o tratamento de águas residuais, para reduzir a poluição no Mediterrâneo, o Egipto, Jordânia, Marrocos e Tunísia”, recordou Nasser Kamel.

“Quando estiver tudo pronto, esperamos recolher 1300 milhões de euros, 13% dos quais serão subvenções, e o resto empréstimos em condições altamente favoráveis e investimento. Os Estados que vão receber ajuda também vão pôr do seu próprio dinheiro neste projecto, não é só dinheiro a vir do Norte para o Sul. Se tudo correr bem, no próximo mês de Abril, estará finalizada em termos de ofertas de financiamento”, contou.

Hidrogénio verde

“Dou outro exemplo, na área das energias renováveis, a região está de facto muito à frente. Podemos ver claramente que há um apetite para investir em hidrogénio verde no Egipto e em Marrocos”, diz o diplomata egípcio. “Vi memorandos de entendimento no valor de 83 mil milhões de euros só para serem investidos no Egipto em hidrogénio verde. Claro que ainda haverá estudos, não são negócios fechados. Se 10% ou 20% disto se materializar, já é um número impressionante. O mesmo se aplica a Marrocos”, conclui.

Um dos motivos para este interesse é a crise energética na Europa, “que levou alguns decisores políticos a pensar no Sul do Mediterrâneo como uma fonte importante de energias renováveis”. Mas há pedrinhas na engrenagem. “Falta-nos a infra-estrutura, em termos de interligações, a economia de escala”, diz Nasser Kamel.

“Se bem que agora estamos a ver sinais de que a Europa tem consciência de que precisamos de fazer um esforço. Marrocos está a construir com Espanha uma interconexão para fazer chegar electricidade limpa a Espanha, Portugal, França e Alemanha, produzida por fontes renováveis. O Egipto e a Grécia estão a construir outra conexão eléctrica entre os dois países, também para exportar através da Grécia energia limpa para o resto da Europa”, enumera.

Pode trazer um novo foco em projectos de energias renováveis, mas qual tem sido o impacto da guerra da Rússia na Ucrânia no Mediterrâneo? “Muito negativo, claro. É 100% negativo, excepto para um ou dois países que produzem petróleo, o resto da região sofreu um grande impacto. A região é importadora líquida de petróleo e gás”, afirma Nasser Kamel.

Justiça climática e social

E não só: a guerra aumentou a insegurança alimentar. “Esta é uma região que tem poucos recursos de água, não é capaz de produzir tudo o que precisa de trigo e de outros cereais. Alguns países da região são 90% dependentes de importações, como o Líbano. O Egipto depende em 55% a 60%, mas com estes valores é o maior importador mundial de trigo. Marrocos também é muito dependente das importações de trigo”, explica.

Esta crise provocou uma desaceleração da actividade económica, que reduziu as perspectivas de crescimento entre 30% e 50% em alguns países, diz Nasser Kamel. “E estes são países com uma demografia galopante, onde o desemprego é um grande problema. A crise teve um impacto claramente muito negativo na região, aumentou desigualdades”, concluiu.

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O resultado de um incêndio florestal em El Pont de Vilomara, Barcelona, no Verão passado: esta é uma das consequências das alterações climáticas no Mediterrâneo ANDREU DALMAU/EPA

Se a União para o Mediterrâneo teve pela primeira vez um pavilhão numa Cimeira do Clima das Nações Unidas, que posição toma sobre o desfecho da COP27, que tanta tinta tem feito correr? “O resultado desta COP fez-nos avançar na justiça climática e social. As decisões tomadas em Sharm el-Sheikh confirmam mais uma vez a importância crítica de promover a afirmação de todas as partes envolvidas na acção climática”, disse Nasser Kamel, num depoimento escrito já depois do fim da COP27. “Ninguém deve ser deixado para trás na luta pelo nosso planeta: ter finalmente um acordo sobre um fundo para as perdas e danos é um grande marco, para garantir que a voz dos que são mais afectados pelos efeitos devastadores das alterações climáticas sejam ouvidos”, concluiu.

“Por causa disto, estamos particularmente satisfeitos por ter participado com o primeiro pavilhão do Mediterrâneo na história das Cimeiras do Clima, para salientar os desafios e o potencial de soluções que existem na nossa região, que está a aquecer rapidamente, mas até agora não tem sido alvo de atenção nas negociações sobre as alterações climáticas”, afirmou Nasser Kamel.

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