Grito claro: do sentido e da asfixia da ação docente

Não pode estar tudo nas mãos dos professores. Têm de ser geradas, aos vários níveis da ação política e social, dispositivos e disposições de reconhecimento, apoio e estímulo.

Heterogeneidade de culturas, condições e interesses; dispersão e desencontro de visões e perspetivas; articulações débeis entre visão e missão, finalidades e funções; excesso de pedidos familiares e sociais; excesso de exigências políticas; excesso de exposição pública (não obstante a aparência da câmara escura); um modelo escolar que faz do ensinar a todos como se fossem um só, das hierarquias e da segmentação a matriz do seu funcionamento; uma solidão profissional que gera o desamparo e a angústia: eis os ingredientes que fazem do trabalho docente uma missão quase impossível.

Pois, nas situações concretas da ação, como pode o professor atender simultaneamente a dez ou vinte pedidos diferentes, como pode individualizar propostas de trabalho, como pode responder, naquele preciso minuto, a muitos pedidos que pairam em muitos olhares? Como pode, sozinho, construir os recursos didáticos necessários à diversidade? Como pode dissipar dúvidas quanto ao êxito das estratégias que inventou, desenvolveu e praticou quando se sabe que os modos do fazer pedagógico são, por definição, ambíguos, problemáticos e incertos? Quando os espaços e os tempos para o encontro profissional e o trabalho colaborativo são quase sempre descoincidentes? Quando a escola é ainda esse lugar onde todos se cruzam (onde todos se desencontram) e entreolham nos corredores que dão acesso ao aulário?

Como pode serenamente trabalhar quando está durante quatro ou seis horas diárias permanentemente exposto a muitos olhares, quase sempre críticos, quase sempre exigentes? Ou então quando tem de enfrentar a apatia e a indiferença de vários olhares perdidos pelas salas? Ou quanto tem alunos que não querem aprender o que o professor tem de supostamente ensinar o que está prescrito no Perfil (desejável) dos Alunos, o que está prescrito nas Aprendizagens Essenciais, o que está prescrito nas Orientações para a Cidadania e Desenvolvimento? Quando está quase sempre em risco de interpelação, de confronto e de dissidência discente? Quando se sabe que o trabalho docente exige sempre uma certa colaboração dos alunos, sob pena de ser ineficaz, e obriga, por isso, ao desenvolvimento de uma arte e uma disposição de interpelação e de procura permanente das melhores respostas didáticas?

Sabemos que há muitas culturas e muitas práticas “profissionais”. Sabemos que haverá professores que podem não ser dignos do nome. Que erraram a profissão.

Sabemos que muito do sucesso passa pela ação comprometida, vinculada e apoiada. E que é possível trabalhar melhor. Em nome do prestígio de uma profissão. Em nome dos olhares, ora suspensos ora perdidos, das nossas crianças e dos nossos jovens.

Mas também sabemos que são os melhores professores aqueles que mais sofrem. Aqueles que mais se enternecem e quase choram quando se veem impossibilitados de agir. Vergados pelo peso da sombra e pela indiferença pública. Mas que, apesar de tudo, teimam em não desistir de inventar dias mais claros. É em nome destes professores e destas professoras que é preciso gritar: não pode estar tudo nas mãos dos professores. Têm de ser geradas, aos vários níveis da ação política e social, dispositivos e disposições de reconhecimento, apoio e estímulo. E que têm de ir além da retórica. Para que a profissão se reafirme no palco social. Para que a docência se prestigie e seja, de facto, o que deveria ser: “o primeiro de todos os ofícios”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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