Morreu o cineasta francês Jean-Marie Straub, o último de um par

O realizador, que com Danièle Huillet, sua mulher, foi autor de uma vintena de filmes, morreu aos 89 anos. Embora algo marginais, a obra de ambos ficará para sempre ligada à modernidade no cinema.

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Danièle Huillet e Jean-Marie Straub Cortesia: Cinemateca

Na hora de escrever o obituário de Jean-Marie Straub, o diário francês Le Monde não se contém nos adjectivos, descrevendo-o logo no primeiro parágrafo como um cineasta intransigente, contestatário, marxista, rebelde, intempestivo e arrebatado. Logo a seguir, e como não poderia deixar de ser, aparece o nome de Danièle Huillet, a mulher com quem escolheu partilhar a vida e a obra.

Ela morreu em Outubro de 2006, ele deixa-nos agora. Jean-Marie Straub morreu, tal como Jean-Luc Godard, em Rolle, pequena comuna suíça nas margens do lago de Genebra, na madrugada de 19 para 20 de Novembro, aos 89 anos, noticia este domingo o jornal francês, num artigo em que Mathieu Macheret, crítico de cinema que trabalha para o Monde e para a revista especializada Cahiers du Cinéma, classifica a obra de ambos como “uma das mais belas e exigentes da história do cinema”, marcada pela conversão, em imagens, de textos e partituras de um punhado de autores que nunca deixou de os acompanhar, composto por escritores, dramaturgos e poetas como Cesare Pavese, Bertolt Brecht, Friedrich Hölderlin e Franz Kafka, ou compositores como Johann Sebastian Bach e Arnold Schönberg.

Straub foi realizador, argumentista, produtor (talvez por necessidade) e actor. Nasceu em Metz, França, em 1933, e, na juventude, educado num meio em que as culturas francesa e alemã andavam lado a lado, começou por sonhar com uma carreira de escritor.

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Não Reconciliados, de 1965 DR

Foi o filme Les Dames du Bois de Boulogne (1945), de Robert Bresson, que o jovem Straub viu em 1950, com apenas 17 anos, que o fez mudar de ideias e apontar a bússola para o cinema, mas pensando só na escrita, sem se atrever sequer a imaginar-se sentado na cadeira do realizador.

É já completamente rendido ao cinema que, em 1954, entra no muito bem frequentado ciclo parisiense de Jacques Rivette, começando a dar-se com o grupo da Nouvelle Vague, que viria a ser responsável por uma verdadeira revolução na forma de contar histórias com imagens em movimento.

Jean-Marie Straub começa, então, a ganhar experiência como assistente de Bresson, Abel Gance, Alexandre Astruc e Jean Renoir, este último uma das suas referências mais antigas da sétima arte.

Em 1958, e depois de se recusar a pegar em armas para combater na Argélia, refugia-se na Alemanha, o que lhe valeu uma contenda com o Estado francês que só viria a terminar em 1971. No ano seguinte casaria com Danièle Huillet (1936-2006), a mulher que jamais perderia de vista, também ela realizadora e argumentista. Juntos, garante o crítico do Monde, escreveram “uma das páginas mais importantes da modernidade cinematográfica à margem do sistema, durante uma aventura humana e artística sem igual”.

Uma página escrita com uma enorme audácia e uma impressionante economia de meios – o casal trabalhou sempre sob o princípio ético e estético de usar o estritamente necessário a todos os níveis e, quando possível, ancorando-se no texto e na música.

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Sicília, de 1999 DR

Da lista de obras que “os Straub” (eram assim conhecidos) assinam merecem destaque títulos como o inaugural Machorka-Muff (curta-metragem de 1963), Não Reconciliado (1965), A Crónica de Ana Madalena Bach (1968), Moisés e Aarão (1974), Das Nuvens à Resistência (1979), Cedo Demais, Tarde Demais (1981), Relações de Classe (1984), A Morte de Empédocles (1987), Abram Caminho para o Amanhã (1997) e Sicília (1999).

Os anos 2000 foram já marcados, sobretudo, por curtas-metragens. A derradeira, de 2020, chama-se La France Contre les Robots e está integralmente disponível no YouTube.

O cineasta Pedro Costa fez um filme sobre Jean-Marie Straub e Daniéle Huillet, sobre o corpo, a identidade, que formavam, Onde Jaz o Teu Sorriso? (Où Gît Votre Sourire Enfoui?, no original).

Sem nunca ter beneficiado de grande acolhimento popular e do respectivo sucesso comercial, a obra dos Straub – sem Danièle, Jean-Marie não voltou a fazer longas-metragens originais – está aí para ser redescoberta em toda a sua radicalidade, feita, disse o cineasta numa entrevista ao crítico de cinema Hans Hurch, a partir das suas próprias experiências e das coisas que lhes eram próximas, embora pudessem estar distantes da maioria.

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