A bazuca não é para europeístas

A “bazuca” representa menos dinheiro dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento e maior dependência política e económica da União Europeia.

Marcelo e Costa dizem que Portugal nunca mais vai receber tanto dinheiro da União Europeia (UE) como agora. Entrevistei uma gestora dos fundos europeus para perceber porquê. Ao que tudo indica, quando começa um novo período de programação dos fundos, diz-se sempre que Portugal “nunca mais” vai ter esta oportunidade. Há um dia em que é verdade.

Há vários mitos sobre o principal instrumento financeiro da Política de Coesão — os Fundos Europeus Estruturais e de Investimento (FEEI). Desde 2020, criou-se mais um, o mito de que a Política de Coesão está a ficar mais forte, quando na realidade estamos perante duas mudanças que revelam o seu desgaste: a redução do dinheiro que recebemos dos FEEI e o aumento da dependência política e económica dos Estados-membros face à UE.

Nunca recebemos tanto dinheiro como agora? Não estamos a falar dos FEEI. O período 2021-27 tem o segundo mais baixo montante negociado em 30 anos: 22.700 milhões de euros. Podíamos argumentar que estamos a receber menos dinheiro porque já não precisamos, mas não é o caso.

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Por outro lado, a nossa dependência da UE está a crescer devido aos instrumentos financeiros de gestão centralizada, assentes no crédito. Para financiar a Estratégia Portugal 2030 — documento de referência das políticas públicas na próxima década —, a Comissão Europeia podia ter aumentado a verba da Política de Coesão e dos FEEI. Mas não o fez. Optou por criar um instrumento concorrente para financiar o país, o Next Generation EU, que inclui o Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MMR) 2021-26, de gestão direta da Comissão Europeia.

A Política de Coesão é a política da UE preferida dos europeístas. Funciona como a cola que une valores e objetivos comuns e tem atravessado várias revisões dos tratados. Foi criada durante a Comissão Delors, com as bases legais do Ato Único Europeu (1986), para auxiliar o processo de integração europeia e ajustar os choques gerados pelo mercado único, apoiando as regiões (NUTS) menos desenvolvidas. O Tratado de Maastricht (1991) deu-lhe um papel de destaque, confirmado pelo Tratado de Lisboa (2007), para reforçar a coesão económica e social e reduzir as diferenças entre as regiões.

Apoiada pelo Banco Europeu de Investimento e pelo Fundo Europeu de Investimento, a Política de Coesão é executada pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, o Fundo Social Europeu e o Fundo de Coesão. Estes fundos são regidos desde 2014 pelo mesmo regulamento dos fundos para a agricultura e as pescas. É neste contexto que surge o sexto ciclo (ou sétimo, se contarmos desde o Antigo Fundo de 1986-1988) de programação dos FEEI, o Quadro Financeiro Plurianual (QFP) para o período 2021-27, cujo regulamento inclui o fundo para a neutralidade climática, a migração, a segurança interna e as fronteiras. O QFP, materializado pelo Acordo de Parceria Portugal 2030, traz 22.700 milhões de euros para Portugal. Tem uma gestão partilhada entre os Estados-membros e a Comissão, devendo atuar para o bem do país e da zona euro. Detém a responsabilidade da execução nacional dos programas e atribui os fundos aos destinatários finais (escolas, empresas, agricultores, municípios, etc.). O dinheiro é recebido com base numa taxa de cofinanciamento do orçamento europeu face ao orçamento nacional. Não corresponde a empréstimos e não agrava a dívida pública dos Estados-membros.

Por outro lado, o MMR foi criado em 2020 para enfrentar as consequências da pandemia e é o instrumento preferido dos bancos europeus. Insere-se num pacote excecional de financiamento que visa dotar os Estados-membros de capacidade financeira para relançar a economia europeia. O MMR enquadra o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para o período 2021-26. Traz 16.644 milhões de euros para Portugal, distribuído através de subvenções (13.944 milhões de euros) e de empréstimos (2700 milhões de euros) — via emissão de obrigações de longo prazo e de dívida flutuante de curto prazo. O PRR tem uma gestão centralizada na Comissão Europeia, e implica menos autonomia política dos Estados-membros. A Comissão acompanha e avalia a execução do mecanismo e mede a realização dos objetivos fixados. Ao contrário dos FEEI, o MMR introduz a lógica do crédito.

Somados estes dois envelopes financeiros, QFP + PRR, obtemos a “bazuca” (que, afinal, é vitamina), um montante inédito na história dos fundos comunitários. Tão gigante que é difícil de criticar. Se subtrairmos o PRR, percebemos que a Política de Coesão e a democracia europeia estão a minguar. Isto é notório no testemunho que recolhemos: “Estamos muito longe da Comissão do Jacques Delors. A atual Comissão, muito voluntariosa em arranjar recursos adicionais, fê-lo com base na gestão centralizada, e aprendeu o caminho da banca.”

Antes da pandemia, os Amigos da Coesão insurgiram-se contra os cortes orçamentais nos FEEI. Durante a pandemia, foi negociado um corte orçamental de 8% nos FEEI, mas as críticas foram silenciadas pela “bazuca”.

Porque é que criaram um plano B para reerguer a UE da pandemia e protegê-la da guerra, quando já tínhamos um plano A, enraizado nos valores fundamentais da UE — solidariedade, igualdade, democracia — a funcionar há 30 anos na administração pública europeia?

“Portugal nunca mais vai ter esta oportunidade” significa que o que é bom não dura sempre. A Política de Coesão é a Europa no seu melhor. Enquanto a UE tiver ambições, deve ter uma Política de Coesão para a ajudar a realizá-las. O maior erro é tomá-la por garantida.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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