Mais Ciência, melhores empresas

Ao querermos mascarar como ciência e inovação o que não passa de política económica, deturpamos o que quer dizer fazer ciência ou inovação e não fazemos nem uma nem outra.

O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) anunciou este mês a intenção de ter metade dos doutoramentos a acontecer em ambiente empresarial ou não-académico, nos próximos cinco anos. A explicação, muito razoável, é que em Portugal apenas 8% dos doutorados estão empregados fora do meio académico.

Em teoria, esta ideia poderia resolver três problemas: 1) o tecido empresarial português tem um nível de formação baixo e é genericamente considerado pouco inovador. Aproximar as empresas das universidades, poderia dinamizá-lo; 2) a comunidade científica sofre de enorme precariedade. Desenvolver doutoramentos em ambiente empresarial poderia aumentar a probabilidade de futura contratação pela indústria; 3) Portugal investe pouco em ciência e esta depende cada vez mais de fundos estruturais europeus. Sendo mais fácil utilizá-los para apoiar projectos aplicados, a sua canalização para doutoramentos poderia libertar dinheiro do Orçamento do Estado para investimento em ciência fundamental (que é fundamental que se faça).

Parece perfeito. Acontece que este movimento é apenas mais um de um enorme esforço de apoio às empresas que o Estado português tem feito, sem evidência de que esteja a funcionar no sentido de promover ciência ou inovação e sem a esperada canalização de fundos para investigação académica.

Primeiro, o que constitui I&D pode ter pouco de Desenvolvimento e nada de Inovação. Basta olhar para a descrição dos projectos co-financiados pelo COMPETE como sendo “Programas Mobilizadores” ou de “Inovação Produtiva” para perceber quão difícil é encontrar propostas de verdadeira I&D. No entanto, transferem para empresas valores muito superiores ao do orçamento total anual da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, principal agência financiadora da ciência em Portugal.

Segundo, para além destes apoios, muitas vezes a fundo perdido, existem outros incentivos públicos para que empresas declarem investir em I&D. Um instrumento particularmente relevante é o SifIDe. Através dele, as empresas descrevem o seu investimento e, se aprovado, uma parte substancial destes gastos é deduzida do IRC. Este financiamento declarado, de perto de 12 mil M€ entre 2006 e 2021, deu origem a quase 5 mil M€ em benefícios fiscais, e é considerado como investimento nacional em I&D. Isto gera dois problemas. Uma vez que os benefícios recaem principalmente sobre o IRC, reflectem mais o estado da economia do que inovação; para além disto, este forte incentivo para declarar o máximo possível revela um óbvio conflito de interesses: do lado das empresas, ao ser convertido em generosos benefícios fiscais, e do lado do Estado, para cumprir critérios de convergência com a UE. Assim, não é de estranhar que quase 90% dos pedidos seja aprovado e que o controlo às despesas declaradas seja mínimo.

Terceiro, a própria FCT tem vindo a preferir uma abordagem “top-down”, com áreas prioritárias definidas politicamente e cada vez mais aplicadas, seja através de programas de interface com as empresas, seja através de programas de colaboração internacional, e tivemos já este mês um exemplo com as linhas estratégicas de cooperação ibérica: energia, espaço e a recém acrescentada microelectrónica, área de trabalho da ministra. Tendo os programas de investigação aplicada muito mais dinheiro, mesmo que a política não seja explícita (e cada vez mais o é), existe um enorme incentivo para que universidades e centros, sempre com falta de financiamento, re-orientem a sua investigação para satisfazer supostas necessidades do mercado ou interesses políticos.

Mas terá este esforço, pelo menos, ajudado a reduzir a precariedade e a gerar inovação? Penso que não. Apesar de as empresas declararem empregar cerca de metade de todos os investigadores a tempo integral (dedutíveis no IRC), empregam menos de 8% dos doutorados. Estes milhares de investigadores declarados publicam pouco ou nada e continuamos com uma produção de patentes insignificante. Paradoxalmente, as poucas patentes que existem pertencem maioritariamente a universidades.

Assim, a deturpação da ideia inicial é total: 1) em vez de se libertarem fundos do OE para ciência fundamental, estrangula-se a academia; 2) em vez de promover melhor ciência e inovação, universidades deixam de fazer investigação nas áreas em que ensinam; 3) as empresas recebem generosos incentivos e doutorandos quase a custo zero e ainda contam com a academia para fazer a investigação que lhes cabia.

Acredito que são meritórias as tentativas de canalização de fundos europeus para a redução das assimetrias, com ênfase na inovação. E não pretendo desvalorizar os esforços para modernizar empresas e dinamizar a economia portuguesa. Mas porque é que não são assumidos como tal e se canaliza dinheiro que deveria ser da ciência unicamente para apoio à economia?

O que se pode, então, fazer? Em 2020, mais de 60 empresários, gestores de ciência e investigadores (incluindo a actual ministra) produziram um documento com propostas concretas para “reter o melhor talento a nível mundial e captar e/ou criar empresas mais inovadoras e produtivas”. Foi pedida uma visão de longo prazo e o reconhecimento da importância de apoiar tanto a ciência fundamental como a investigação em ambiente empresarial, mas garantindo que este apoio “seja acompanhado por avaliação por painéis internacionais (…), e que o resultado destas avaliações seja público e transparente (…)”. Não se pede menos às e aos cientistas que recebem dinheiros públicos.

Principalmente, é importante reconhecer que ao querermos mascarar como ciência e inovação o que não passa de política económica, deturpamos o que quer dizer fazer ciência ou inovação e não fazemos nem uma nem outra.

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