Durante algumas horas, ao final da tarde de terça-feira, temeu-se o pior no continente europeu. Uma enorme explosão, uma cratera e duas pessoas mortas numa quinta em Przewodów, uma pequena localidade polaca a cerca de 6 quilómetros da Ucrânia. Em território da NATO, portanto, e com dedos apontados a Leste, muito a Leste - à Rússia.

O dia tinha sido de violentos bombardeamentos russos sobre praticamente todo o território ucraniano, ali ao lado, numa aparente campanha de represálias pela tomada de Kherson, cidade ucraniana durante meses ocupada por Moscovo, pelas forças de Kiev. Lviv, uma das cidades ucranianas alvo dos bombardeamentos russos na terça-feira, tal como a central eléctrica de Dobrotvirska, ficam muito perto da fronteira polaca e do alvo do que se temeu ter sido um ataque russo, premeditado ou acidental. 

Mas o que causou a explosão em Przewodów?

Um míssil. Sobre isto, o consenso é total.

Quem disparou o míssil e porquê?

As primeiras notícias difundidas ao final da tarde de terça-feira causaram alarme generalizado na Europa: citando fontes norte-americanas, a agência noticiosa Associated Press avançava que um ou mais mísseis tinham atingido território polaco. No terreno, a imprensa polaca sugeria que se tratavam de mísseis "russos", com o próprio Governo de Varsóvia a falar num "míssil de fabrico russo". 

De imediato, várias reacções significativas:

  • A Polónia reuniu de emergência a sua cúpula de segurança, elevou o nível de prontidão das suas forças armadas e anunciou a intenção de accionar o artigo 4.º do Tratado do Atlântico Norte, o documento fundador da NATO (já lá vamos)
  • Ainda escassos minutos após a explosão, uma mensagem de cautela vinda dos Estados Unidos: o Pentágono dizia que não conseguia "confirmar nem desmentir" que tinham sido mísseis russos a atingir a Polónia
  • Ao redor da Polónia, mensagens em sentido inverso: a Ucrânia a responsabilizar a Rússia, e a Lituânia a sinalizar um sentimento geral de pânico sobre a possibilidade de um alastramento do conflito ucraniano. "Cada centímetro da NATO tem de ser defendido", escreveu o Presidente lituano Gitanas Nauseada no Twitter.

E a Rússia?

Moscovo desmentiu logo, e com grande celeridade, qualquer responsabilidade pelo que quer que tenha acontecido naquele pacato recanto da Polónia rural. Uma "provocação", chamaram os russos à sugestão de que teriam disparado um ou mais mísseis contra território polaco.

Voltemos atrás. O que é o artigo 4.º?

É um artigo do Tratado do Atlântico Norte que prevê a convocação de uma reunião da NATO para a discussão de um assunto considerado urgente por um membro da Aliança Atlântica.

E o artigo 5.º?

Um artigo com uma carga muito mais dramática que o 4.º: expressa que um ataque armado a um membro da NATO deve ser considerado como um ataque a cada um dos restantes membros da Aliança Atlântica, o que acarreta a possibilidade de uma reacção militar alargada. Mas o artigo 5.º não esteve em causa na noite de terça-feira, não tendo sido aludido pela Polónia ou por outro país aliado.

Mas afinal foi ou não foi um míssil russo que caiu na Polónia?

Os Estados Unidos foram muito céleres a assumir as suas dúvidas sobre a possibilidade de se ter tratado de um míssil russo. Durante a noite de terça para quarta-feira, quase do outro lado do mundo, o Presidente norte-americano Joe Biden, que estava em Bali, na Indonésia, para a cimeira do G20, dizia que Washington não tinha qualquer informação que comprovasse a tese de um disparo russo, premeditado ou acidental, e que era mais provável o cenário de um míssil ucraniano, parte do sistema de defesa anti-míssil das forças de Kiev, a errar o alvo e a cair na vizinha Polónia.

Depois da reunião de emergência na noite de terça-feira, também Varsóvia começou a corrigir o seu discurso: o Presidente polaco Andrzej Duda dizia que era "altamente provável" que o míssil que foi cair em Przewodów tivesse sido disparado pelas forças ucranianas.

Na quarta-feira, também o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, considerou que este era o cenário mais provável: um disparo acidental por parte da Ucrânia, que estava a ser alvo de um dos mais intensos bombardeamentos russos desde o início da actual invasão.

O que sabemos do míssil?

Segundo as autoridades polacas, que estão a investigar o local da explosão, o projéctil em causa será um S-300, um míssil de fabrico russo, da era soviética, usado tanto por Moscovo como por Kiev, mas também na Síria e no conflito entre a Arménia e o Azerbaijão.

É um míssil terra-ar, utilizado para derrubar aviões inimigos, drones, mísseis cruzeiro e mísseis balísticos. Integrados em sistemas de defesa anti-aérea, são normalmente disparados em grupo, em simultâneo, podendo cada míssil seguir automaticamente um alvo diferente.

Não se conhece ainda a versão exacta do S-300 que caiu na Polónia, mas o alcance máximo do modelo mais recente não vai além dos 350 quilómetros. A versão mais convencional fica-se pelos 150 quilómetros. 

Em ambos os casos, este raio de acção coloca a Rússia ou as suas tropas fora do perímetro imediato de Przewodów. (A Bielorrússia está suficientemente próxima, mas o consenso na NATO é mesmo em torno de um erro ucraniano.)

E o que diz a Ucrânia?

O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, diz que não tem dúvidas que a culpa não é da Ucrânia. "Não foi um míssil nosso", disse na quinta-feira, citando garantias da liderança militar ucraniana. O chefe da diplomacia de Kiev, Dmytro Kuleba, qualifica qualquer sugestão de responsabilidade ucraniana como "uma teoria da conspiração".

Isto é sinal de uma descoordenação entre os aliados?

Há sintomas de alguma falta de sintonia em todo este incidente. Não só nas versões divergentes de americanos e ucranianos sobre o que se passou na terça-feira, como no tom muito diferente das reacções dos países bálticos (de pânico) e de Washington (de cautela).

No entanto, na quarta e quinta-feira, ensaiou-se uma síntese bem encapsulada nestas declarações do secretário-geral da NATO: "Isto não é culpa da Ucrânia. A Rússia tem a responsabilidade máxima ao continuar a sua guerra ilegal contra a Ucrânia". Ou seja, que um disparo acidental ucraniano não teria acontecido se a Rússia não tivesse invadido o país vizinho.

O que é que este incidente pode significar para o decurso da guerra na Ucrânia?

Passado o estado de alarme de terça-feira, não muito. O futuro do conflito joga-se noutras frentes. A reconquista de Kherson pelos ucranianos e os seus avanços no Leste sinalizam o fracasso da invasão russa, o que pode obrigar Moscovo a procurar uma solução política, uma saída airosa para o impasse militar (é a ideia que Washington tem promovido recentemente). 

Mas o Inverno, como tantas vezes aconteceu ao longo da História, também pode favorecer a Rússia: a Ucrânia prepara-se para meses gelados e às escuras, com cerca de metade da sua infraestrutura eléctrica destruída por bombardeamentos, e o actual ímpeto militar ucraniano poderá estar prestes a esgotar-se.

O certo é que o cenário de uma III Guerra Mundial, tão aludido na noite de terça-feira nas redes sociais, voltou para a gaveta. Pelo menos, por mais uns tempos.