Nova lei de violência sexual em Espanha permite reduzir penas e libertar condenados

Distinção entre “abuso” e “agressão” sexual deixou de existir e foram definidos novos limites mínimos e máximos de penas, que se aplicam retroactivamente.

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Ministra da Igualdade, Irene Montero, diz que os juízes que reduziram penas são "machistas" Mauricio Duenas Castañeda/EPA

A entrada em vigor de uma nova lei sobre crimes sexuais em Espanha está a originar uma catadupa de revisões de condenações, diminuindo as penas de prisão ou mesmo pondo em liberdade pessoas que tinham sido condenadas por esses delitos. A constatação gerou uma acesa troca de palavras entre o Governo e o poder judicial e causou mal-estar até dentro do próprio executivo.

A nova Lei de Garantia da Liberdade Sexual, conhecida informalmente como lei do “só sim é sim”, era uma das grandes bandeiras políticas do Podemos e entrou em vigor a 7 de Outubro, mais de dois anos depois de ter sido proposta e começado a ser analisada por várias entidades.

Entre outros pontos, a lei eliminou a distinção entre “abuso sexual” e “agressão sexual”, passando a considerar qualquer delito deste tipo como “agressão” e estabelecendo uma escala de gravidade, segundo a qual são definidas as penas a aplicar. Daqui resultaram novos limites mínimos e máximos das condenações, consoante as situações agravantes de cada caso.

No Código Penal espanhol existe uma disposição, considerada intocável, que permite a aplicação de efeitos retroactivos a todas as penas quando entra em vigor uma nova lei mais favorável para os réus, mesmo os que já foram condenados e estão a cumprir pena. E foi assim que, nas últimas semanas, mais de uma dezena de pessoas viram as suas penas de prisão diminuir de um dia para o outro ou foram mesmo postas em liberdade.

Foi o que aconteceu a um professor de inglês de uma escola dos arredores de Madrid que tinha sido condenado no início deste ano a seis anos e nove meses de prisão por crimes de abuso sexual contra quatro menores e posse de pornografia infantil. Com a entrada em vigor da nova lei, a pena foi reduzida a 15 meses de encarceramento e, como o homem já tinha estado em prisão preventiva, o prazo já tinha sido largamente ultrapassado e o condenado saiu logo em liberdade.

“O melhor defensor do meu cliente chama-se Irene Montero e é ministra da Igualdade”, disse o advogado deste professor ao El Mundo. “Esvaziou de conteúdo o delito de abuso sexual sem contemplar todas as derivadas”, constatou Álvaro García-Olay. O advogado diz mesmo que está a ponderar pedir uma indemnização ao Estado, uma vez que o seu cliente esteve preso durante três anos e quatro meses.

"Machismo” e pedidos de demissão

Perante o crescente número de condenações revistas, que os tribunais estão a fazer nos últimos dias por aplicação automática da lei, a ministra da Igualdade e várias figuras destacadas do Podemos, de que Irene Montero é dirigente, vieram na quarta-feira arremeter contra o “machismo” dos juízes que tomaram essas decisões, a quem acusam de “incumprir a lei”, assegurando que a mesma está “bem escrita” e que são os magistrados judiciais os que têm “falta de perspectiva de género”.

Além de terem sido mal recebidas por alguns ministros socialistas do Governo de coligação, que defenderam uma revisão da lei para impedir libertações de condenados, as críticas indignaram a Associação Profissional da Magistratura, que representa a maioria dos juízes espanhóis. Em comunicado, a organização considera os “ataques” de Montero “intoleráveis e inadmissíveis em democracia”, exigindo “a sua imediata demissão”.

Esse cenário, bem como o de uma eventual revisão legislativa, foi afastado pelo primeiro-ministro. Em Bali, onde estava a participar na cimeira do G20, Pedro Sánchez (PSOE) disse que a lei visa “reforçar a segurança das mulheres” e que é “uma grande conquista do movimento feminista”, sendo preciso “unificar a doutrina” e “criar jurisprudência”.

O gatilho para a criação desta lei foi a decisão judicial de primeira instância sobre a violação colectiva de uma mulher nas festas de San Fermín, em Pamplona, em 2016, que o tribunal considerou como “abuso sexual” e não “agressão” ou “violação”. Os cinco homens de La Manada acabariam por ser condenados mais tarde pelo Tribunal Supremo a 15 anos de prisão, já depois de uma onda de manifestações ter varrido Espanha e de o então Governo de Mariano Rajoy (PP) ter encarregado uma comissão de especialistas de fazer recomendações para alterar a lei.

O El País e o ABC relatam esta quinta-feira que houve vários alertas, nos dois anos em que a lei esteve a ser discutida no Congresso, de que esta poderia ter um efeito contraproducente se não fosse inscrita uma norma transitória que limitasse a sua retroactividade. Irene Montero disse à rádio Cadena Ser que o Governo “não viu necessidade de a incluir” porque estava convicto de que a jurisprudência espanhola era “clara” a impedir a revisão de penas em baixa.

O advogado de um dos integrantes de La Manada, o único que poderá ser abrangido por uma eventual revisão de pena, diz agora estar a ponderar pedir essa medida.

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