A língua portuguesa e as recentes alterações ao Código dos Contratos Públicos

Com a alteração promovida pelo Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de Novembro, a falta de tradução portuguesa de documentos em língua estrangeira deixa de ser uma irregularidade insuprível das propostas.

É sabido que, nos termos dos artigos 9.º, alínea f) e 11.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, a língua portuguesa é a língua do Estado Português e, como tal, se impõe a sua utilização a todos os seus poderes, no qual se inclui, naturalmente, o poder administrativo. Explicar qual o alcance desta imposição não tem sido simples, havendo inúmeros casos de fronteira nos quais essa determinação é controversa, sendo, necessariamente, relevante discutir os seus limites.

No plano do Direito Administrativo, as soluções legais que concretizam estes ditames são justificadas, em regra, com a necessidade em cumprir o interesse público. O tópico foi sempre relevante no plano da contratação pública e não estranha que tenha sido no Código dos Contratos Públicos (CCP) que a regulação normativa tenha sido pioneira e, concomitante, viesse a inspirar outras soluções mais recentes. É o caso do Código do Procedimento Administrativo que, desde 2015, estabelece que “a língua do procedimento é a língua portuguesa”. Aparentemente esta norma não comporta excepções, contudo, a verdade é que sempre a interpretámos de uma forma não absoluta – exigindo-se, de acordo com uma interpretação absoluta, a título de exemplo, sempre uma tradução ao particular quando uma documentação não se encontre redigida em português – e, não deve causar espanto, que, neste contexto e no âmbito das normas que regem a contratação pública, se tenha registado uma tendência para a relativização da regra que estabelece a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa nos procedimentos administrativos contratuais.

Como lapidar exemplo da quebra da absolutização do uso da língua portuguesa, encontramos a alteração promovida ao CCP pela Lei n.º 30/2021, de 21 de Maio, nomeadamente o artigo 21.º, alterando a alínea c) do n.º 1, do artigo 86.º do CCP, admitindo-se agora nesta alínea a exigência dos documentos de habilitação se encontrarem: “[r]edigidos em língua portuguesa, ou acompanhados de tradução devidamente legalizada no caso de estarem, pela sua natureza ou origem, redigidos numa outra língua, salvo se o programa do procedimento dispuser diferentemente e estabelecer a suficiência da redação dos documentos em língua estrangeira sem necessidade de tradução”.

Admite-se, portanto, que, desde que o programa de procedimento o preveja, os documentos possam ser redigidos numa língua que não a portuguesa, não conduzindo à caducidade da adjudicação se vier a ser entendido nesse programa de procedimento que determinada língua é perceptível ou equivalente à língua portuguesa e, como consequência, inexiste a necessidade de traduzir a documentação em causa.

Sem explicar com o detalhe que o tema merece, deve mencionar-se que, sempre que a utilização da língua portuguesa era legalmente imposta (designadamente, conforme disposto nos artigos 58.º, n.º 1 e 169.º, n.º 1, do CCP), a solução controversa – embora com alguma jurisprudência discordante – para o incumprimento desta regra era, por aplicação dos artigos 86.º, n.º 1, alínea c) e 169.º, n.º 2 e 184.º, n.º 2, alínea g) do CCP a caducidade da adjudicação ou a exclusão da candidatura, sendo considerada uma formalidade essencial.

A alteração do CCP promovida pelo recentemente publicado Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de Novembro, vem introduzir uma modificação ao contexto descrito: de facto, passa a ser possível, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 72.º do CCP, que a “[a] não junção de tradução em língua portuguesa de documentos apresentados em língua estrangeira” possa ser considerada uma irregularidade formal suprível de candidaturas e propostas, a menos que o suprimento em causa “seja suscetível de modificar o respetivo conteúdo e não desrespeite os princípios da igualdade de tratamento e da concorrência”.

Em suma, um determinado júri pode, a partir da entrada em vigor desta alteração legislativa, deixar de se encontrar na contingência, quando a tradução de documentação seja legalmente imposta, de excluir, designadamente uma candidatura, deixando, aparentemente, de poder ser qualificada como uma formalidade essencial.

A nova solução é muito positiva, uma vez que concilia a tensão entre a necessidade de proteger o interesse público envolvido na regra – que, naturalmente, comporta excepções – da obrigatoriedade da utilização da língua portuguesa por parte da Administração Pública e o interesse privado de, por exemplo, um candidato em participar num dado procedimento contratual.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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