Comissões Técnicas. E todas o tempo levou

O conhecimento e a capacidade do LNEC deixaram de existir e por isso a sua indicação para a Comissão de Acompanhamento do novo aeroporto?

Nomeações de comissões para a resolução de problemas específicos, não enquadrados, como deveria ser maioritariamente a situação, em planos estratégicos do país, passaram a ser a norma. Não sabemos exatamente quantas comissões foram nomeadas pelos governos recentes.

Sabemos, isso sim, que sempre que surge um problema, uma contestação dos partidos, seja na Assembleia da República, ou de posições dos seus dirigentes, de intervenções da designada sociedade civil, especialmente se veiculadas pela comunicação social, é sistematicamente nomeada uma comissão ou um grupo de trabalho. Esta prática é retratada no aforismo “quando queres acabar com uma questão cria uma comissão”.

A título de exemplo, em pouco mais de dois anos, o XX Governo Constitucional criou 27 comissões, grupos de trabalho e unidades técnicas.

A constituição destes instrumentos de apoio à decisão, datados no tempo, aliadas ao desconhecimento público do trabalho que produzem, alimentam a ideia de que são criados por tudo e por nada. Esta proliferação apenas se entende por desconfiança nas instituições públicas existentes na estrutura orgânica dos diferentes ministérios.

Acresce que as comissões, constituídas ad hoc, desaparecem com o tempo e não são responsabilizáveis pelos atos que praticam, ao contrário do que sucede com os organismos da Administração Pública e com as empresas públicas.

A explicação para a proliferação de comissões estará, talvez, na inexistência de planos nacionais estratégicos setoriais que garantam o enquadramento de qualquer decisão política sobre investimentos públicos, designadamente em infraestruturas de transportes.

Os desafios do país implicam assumir o planeamento em todas as suas dimensões como peça fundamental na criação de um modelo de desenvolvimento sustentável que se ajuste às exigências de uma sociedade cada vez mais exigente, num mundo globalizado e altamente competitivo em que infraestruturas de transporte modernas e eficazes são determinantes.

Porquê então a constante opção dos governos por comissões e unidades técnicas? Vejamos exemplos de comissões criadas no setor das infraestruturas aeroportuárias.

A Resolução do Conselho de Ministros n.º 94-A/2012 de 8 de novembro, criou a Comissão Especial de Acompanhamento da Privatização da ANA – Aeroportos de Portugal. S.A. Tinha por missão “elaborar um relatório acerca da regularidade, da imparcialidade e da transparência da operação de privatização em curso”.

Um mês depois, em 14 de dezembro de 2012, foi celebrado o contrato de Concessão de Serviço Público Aeroportuário. Qual foi a finalidade desta comissão se a assinatura do contrato ocorreu cerca de um mês depois da sua criação? O seu relatório final, de 22 de janeiro de 2014, sem qualquer eficácia, contem ressalvas ao conteúdo do contrato.

Através do despacho n.º 2989/2018 é nomeada a Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, criando uma comissão para a renegociação do Contrato de Concessão de Serviço Público Aeroportuário, assinado em 14 de dezembro de 2012. Não se conhecem os resultados desta comissão.

Recentemente, a Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 89/2022 (Diário da República de 14 de outubro de 2022, 1.ª Série, páginas 19 a 39) estabelece a constituição de uma Comissão Técnica Independente, bem como a sua composição, que inclui um coordenador-geral, a nomear pelo primeiro-ministro, e os coordenadores de equipas de projeto. Cria também a Comissão de Acompanhamento.

A constituição desta Comissão Técnica Independente, como se a independência não estivesse intrínseca ao processo, evidencia a desvalorização contínua das instituições públicas da Administração Central.

Cito Miguel Poiares Maduro (Expresso de 12/02/2021). “Uma Administração politicamente capturada acaba apenas a validar as opções que intuitivamente correspondem ao interesse do poder político do momento”.

A RCM n.º 89/2022 tem por objetivo “Promover a análise estratégica e multidisciplinar do aumento da capacidade aeroportuária da região de Lisboa”. Assinalo: da região de Lisboa.

Trata-se de um documento extenso, pretensamente exaustivo, ocupando 21 páginas do Diário da República, mas desequilibrado e com uma orientação que intuitivamente pode ser considerada como correspondendo às posições do poder político do momento. Pode ser inserida na constatação de Miguel Poiares Maduro.

Um Estado só é inteiramente autónomo se basear os processos de decisão em organismos técnicos estáveis e competentes, inteiramente independentes, responsabilizáveis pelos atos que praticam e nos quais os governos e os cidadãos possam depositar a sua confiança.

Com a criação das comissões designadas na resolução do Conselho de Ministros (RCM n.º 89/2022) está a desprezar-se o conhecimento e a capacidade técnica, acumulados em décadas em instituições do Estado e em empresas públicas com competências técnicas na elaboração dos estudos. O modelo adotado para apoio à decisão potencia a desconfiança em relação aos resultados e a permanente contestação.

Esta RCM atribui ao Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) o papel de “assegurar os encargos orçamentais decorrentes da referida comissão (Comissão Técnica Independente), prestar o apoio logístico e administrativo, bem como o desenvolvimento dos procedimentos atinentes às eventuais aquisições de serviços que se revelem necessárias, decorrentes da criação e funcionamento da Comissão Técnica Independente e da Comissão de Acompanhamento.”

De acordo com esta RCM, o LNEC passa a ter as funções de apoio logístico e administrativo, com nomeação da sua presidente para a Comissão de Acompanhamento, constituída por duas dezenas e meia de entidades e, pasme-se, de angariar fundos.

Não é atribuída a esta instituição do Estado qualquer intervenção que tenha em conta o seu passado de conhecimento, sempre pautado por exigentes padrões de ética, de isenção e de idoneidade científica e técnica, sempre ao serviço do país.

O LNEC conduziu em 2007 e 2008 o estudo da análise técnica comparada das alternativas de localização do novo aeroporto de Lisboa. Utilizou numa metodologia inspirada no disposto na legislação sobre avaliação ambiental estratégica, que teve como referência as Orientações Estratégicas para o Sistema Aeroportuário Nacional, não identificadas na RCM.

O relatório deste estudo foi bastante elogiado, tendo suscitado a sua aceitação unânime por parte dos partidos com assento na AR e o respeito dos cidadãos. O conhecimento e a capacidade do LNEC deixaram, entretanto, de existir e por isso a sua indicação para a Comissão de Acompanhamento?

As comissões desaparecem com o tempo e muitas vezes sem que haja um registo, um controlo, uma continuidade na transmissão do conhecimento, uma responsabilização, uma avaliação dos resultados do trabalho que é solicitado aquando da sua criação.

Recordando o filme “E tudo o vento levou”, as Comissões, cujos resultados se esvaziam no tempo, podem intitular-se: E todas o tempo levou.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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