Bife nº 20 no jantar do chef Alexandre Silva para o século XXII

Qual será o papel de um cozinheiro daqui a 100 anos? O que virá primeiro, a saúde ou o prazer? Esta é uma receita possível para 2122.

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Alexandre Silva pensou uma refeição para o século XXII Nuno Ferreira Santos

Desafiámos Alexandre Silva, chef dos restaurantes Loco e Fogo, em Lisboa, a criar uma receita para daqui a 100 anos. Mas, antes de passarmos à mesa de 2122, e para o ajudar a sistematizar ideias, propusemos uma conversa com Paulina Mata, engenheira química e criadora do mestrado em Ciências Gastronómicas da Universidade Nova de Lisboa.

“Daqui a 100 anos, nada será como hoje”, declara Paulina Mata, que se juntou à conversa a partir de Londres. Acredita que, um pouco como tem vindo a acontecer com o tabaco, já “daqui a cinco ou dez anos, vamos ficar chocados quando virmos alguém a comer carne”. Pelo menos, a tradicional carne de animais sacrificados para o efeito. Quanto à carne produzida em laboratório, a partir de células animais, não tem dúvidas de que se vai tornar algo mais presente nas mesas do futuro, embora, dada a origem animal, continue fora da alimentação dos veganos.

Alexandre Silva está totalmente de acordo com a ideia de que “o veganismo vai ter um crescimento muito grande”. Por outro lado, pensa que, “para darmos resposta, vai haver uma pressão enorme por parte dos produtores para mudar as regras do jogo no que diz respeito ao biológico”, de forma a “colocar mais químicos na produção para alimentarmos a população mais depressa”.

Prever o que vai acontecer na próxima década ainda é um exercício possível, dizem ambos, mas, quando pensamos em 2122, torna-se muito mais complicado. “Daqui a 100 anos, a profissão de cozinheiro, ou não existe ou será completamente diferente”, arrisca Alexandre Silva, lançando uma pergunta a Paulina Mata: “Será que os governos vão passar a ditar as regras? Dizendo, por exemplo, que a partir de agora acabou a produção pecuária.”

Paulina vê esse cenário como uma forte possibilidade. “Acredito que [os governos] nos vão obrigar a isso. Já hoje, se discutem os subsídios dados à pecuária.” E se se avançar pela produção de proteína a partir de microorganismos, “há a vantagem de se poder produzir no local”, ou seja, com uma pegada ambiental muitíssimo menor. Mais cedo ou mais tarde, as mudanças terão de passar, directa ou indirectamente, por medidas políticas, que irão no sentido que a opinião pública já está a seguir. Ela própria sente que já reage hoje muitas vezes de forma diferente: “Dantes, comia tudo. Agora, dou comigo a pensar duas vezes perante certas coisas.”

Quanto aos receios de Alexandre Silva de que no futuro se perca “o encanto da cozinha”, Paulina declara-se optimista. “O que comemos define muito do que somos”, e esse é um aspecto que não se deve perder. “Hoje, estamos a fazer aqui no restaurante um cabrito estonado”, diz Alexandre. “Daqui a 100 anos, vai ser impossível…” “Vai ser apresentado como uma coisa cultural”, contrapõe Paulina. “Manter isso não será um pouco o papel dos cozinheiros? Claro que não vai ser fácil, porque foram habituados a pensar de uma certa forma, vai levar tempo.”

Com esta reflexão sobre qual será a missão de um cozinheiro no futuro, terminou a conversa, e Alexandre Silva dedicou-se então ao exercício de pensar a receita. Aqui fica o resultado explicado pelo chef.

“Acredito que daqui a 100 anos as coisas serão bastante diferentes, apesar de não querer que sejam no que respeita à parte cultural da gastronomia e do prazer.

  • Carne produzida em laboratório a partir de células animais
  • Liofilização desenfreada
  • Veganismo maioritário
  • Saúde em primeiro lugar
  • Impressoras que “imprimem” o que nos apetece comer

Acredito que muita coisa será para lá de diferente, e nem sequer conseguimos imaginar o que a velocidade a que as novas gerações quererão viver nos trará.
Fica aqui um menu em modo ficção de como acho que poderão ser as coisas daqui a 100 anos.”

Menu

Sopa de vegetais liofilizados

Bife n.º 20 (produzido em laboratório) com massa anti-inflamatória de vegetais de leguminosas
Acredito que será possível escolher o nível de gordura e de proteína na carne. Como num catálogo de perfumes, haverá para todos os gostos, sejam eles virados para o prazer ou para a saúde. O bife será cozinhado sem caramelizações, pois estas serão proibidas por questões de saúde. Serão criadas novas técnicas que permitam dar o efeito crocante e de caramelização, mas sem degradação dos açúcares e proteínas.

Pílula de controlo de valores
Quando, daqui a 100 anos, se falar de refeição equilibrada, não será com a consistência que temos agora, mas sim elevada a uma escala de precisão que é difícil medir neste momento, pelo que no final da refeição poderá haver um comprimido que regula o que ficou em défice na nossa refeição – a sobremesa do século XXII.

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