Uma nova era de prosperidade assente na repressão colonial

O MNE português emitiu uma nota esclarecendo ter “conhecimento da detenção de um cidadão portador de passaporte português” em Hong Kong. “Um cidadão portador” é um nacional. Não há meio-termo.

Há dias fomos surpreendidos com a detenção em Hong Kong de um cidadão português, Joseph John, cujo nome chinês é Kin Chung Wong, engenheiro de projecto no Royal College of Music, em Londres. O detido regressara a HK para auxiliar a sua mãe, ali residente, que sofre de demência.

Em causa estão factos, de acordo com o juiz, que se prendem com a publicação em redes sociais de declarações e/ou fotos “com intenção de promover a insurreição”, apelar ao “ódio e desprezo”, “estimular o descontentamento” contra o governo, “incitar pessoas à violência” e promover a “desobediência civil”. A gravidade das acusações levou à negação da fiança, tendo a acusação solicitado um adiamento do julgamento para que as autoridades devassem convenientemente os seus smartphones e laptop, e tenham acesso à sua conta pessoal.

Peter Law, que afinal também é Peter Law Tak-Chuen, é um dos juízes de confiança do governo de HK, escolhidos para julgarem casos relativos à Lei de Segurança Nacional de 2020.

Tirando este detalhe, do qual não se deu nota no despacho da Lusa e que pode inculcar a ideia de que esse magistrado é algum expatriado, interessa perceber duas ou três coisas, para que as pessoas não sejam remetidas à parcimónia informativa.

Primeiro, convém saber o que é o crime de sedição. O termo significa revolta, insurreição ou rebelião contra a ordem estabelecida. Juridicamente é um crime inexistente em Portugal. Abreviadamente, poderá definir-se como o uso de palavras, símbolos ou outras representações (cartoons), contidas em jornais, livros ou outros documentos, de onde possa inferir-se um apelo, sugestão ou incitamento à prática de actos de violência, ódio ou desprezo pelo governo, pela manutenção da lei ou pela administração vigente.

Esse crime, com registo em ordenamentos de common law, apareceu em HK cerca de 1840. Ganhou forma em 1844 através de uma ordinance que regulou a edição e publicação. E foi acolhido nas leis de 1914 para silenciar os activistas anticoloniais. Mais tarde, surgiu em legislação de 1922 e 1938, dando poderes excepcionais às autoridades para censurarem publicações chinesas e prenderem opositores políticos. Após 1949, e em especial durante a Revolução Cultural, em 1967, as leis de sedição serviram para prender editores, cronistas e jornalistas. Muitos foram sentenciados com a prisão. A partir daí, atento o seu anacronismo, e a violência que lhes estava subjacente, o próprio governo colonial deixou de aplicar essas leis.

Com a transferência de soberania, em 1997, nada se alterou. A Lei Básica (LB) previa no artigo 23 que se aprovasse legislação destinada a contemplar a segurança nacional e a acolher normas idênticas às vigentes na RPC. Tal não aconteceu devido à impopularidade dessa disposição e à incapacidade dos governos de HK. Assim, em 2020, em Pequim, o Comité Permanente da Assembleia Popular substituiu-se ao órgão legislativo local, sem que para tal se alterasse previamente a LB, opção politicamente ainda mais sensível, e aprovou uma lei de segurança interna contendo em termos renovados o crime de sedição.

Este é um tipo que criminaliza a liberdade de expressão e o direito de opinião, em termos agravados face à legislação colonial. As penas podem ir agora até à prisão perpétua. A sua amplitude permite que seja aplicado com grande discricionariedade, para não dizer arbitrariedade.

Recentemente, foi com base nesse crime que as autoridades prenderam e condenaram empresários, editores, jornalistas, políticos, advogados e terapeutas autores de obras para crianças, apreenderam livros e revistas, reprimiram toda e qualquer visão contrária aos dogmas oficiais, o que para muitos choca com o estatuto de HK e a vigência de instrumentos de direito internacional, nomeadamente o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, também em vigor em Macau.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros português emitiu uma nota esclarecendo que tem “conhecimento da detenção de um cidadão portador de passaporte português”.

Face a este palavreado pergunta-se se “um cidadão portador de passaporte português” não é um cidadão nacional? Se é, tendo-lhe sido atribuído um passaporte, não se vê porque não há-de merecer a dignidade de tratamento de qualquer outro. Em Portugal não há passaportes para portugueses ultramarinos. “Um cidadão portador” é um nacional. Não há meio-termo.

Desconheço o que efectivamente se fez após a detenção para cuidar desse cidadão e que apoio foi prestado relativamente à sua mãe, o que coloca outra questão: o que está Portugal disposto a fazer para defesa dos seus cidadãos.

O que aconteceu em HK abre um precedente perigoso em Macau, onde existe uma lei de segurança nacional que o governo se prepara para rever “prospectivamente” (...) “conforme a situação actual da sociedade, superando os problemas da lei vigente” – que se desconhecem quais sejam porque nunca foi aplicada – “para corresponder às necessidades do sistema jurídico de defesa da segurança do Estado, na nova era (...)”.

Entre outras coisas, quer-se proceder ao “aperfeiçoamento do texto legislativo” relativo ao crime de sedição, note-se, situação em que, pese embora a consagração dos crimes de traição, secessão e “subversão contra o poder político”, estes “não respondem de forma efectiva à gravidade e à censura social da instigação ou assistência”, “pelo que se recomenda (...) criminalizar de forma independente a instigação ou a assistência relacionada mediante o aditamento de disposições apropriadas”.

Que “disposições apropriadas” são essas? Até hoje ninguém viu sequer um anteprojecto do que se quer aprovar a toque de caixa. Mas o executivo esclareceu que a iniciativa legislativa reuniu “amplo consenso social”, com mais de 95 % de opiniões favoráveis a algo que só o deus que zela pela nossa segurança conhece*. Opiniões contra: 0,33 %. Gente que desconhece ou não sabe interpretar a LB e precisa de ser esclarecida.

Sabe-se sim, porém, que para além do “aperfeiçoamento”, o crime de instigação à sedição será novidade. E também que a reforma é considerada essencial na “nova era” de uma terra com 35 km2, menos de 700 mil almas, de onde só se pode sair por terra para a China ou HK, e em que a política de tolerância zero está a conduzir ao seu empobrecimento acelerado.

Há, ainda, mais uma mudança notável: o poder deixou de estar no cano de uma espingarda. A máxima maoista morreu. O poder está hoje no “aperfeiçoamento” da pior legislação colonial. É por isso irónico que Pequim sinta necessidade de espalhar os seus afectos e o sonho da “nova era” recorrendo às repressivas leis que herdou para punir quem se atreva pensar diferente e o manifeste.

As leis coloniais que reprimiram nacionalistas chineses, fecharam jornais, limitaram a liberdade de imprensa, servem hoje para protecção da clique que apoia a nova “inquisição literária”, símbolo maior da “deterioração dos direitos baseados no constitucionalismo de HK”. (The Diplomat, Hong Kong Sedition Law is Back, 3/9/2021). Dúvidas não tenho, perdidas as ilusões, que o que aconteceu em Animal Farm, como E. Lai escreveu, se tornou realidade. E muito antes do final do período de transição.

Mas mais terrível é a certeza, em cada dia, de que a luminosa “nova era” traz consigo uma escolha que não consta de nenhuma lei, e que se resume ao silêncio, ao elogio pedinte e servil, à autocensura ou à censura com punição, sem que ao menos se saiba se um dia iremos todos ser referidos pelo MNE como meros portadores de passaportes.

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