Poeta venezuelano Rafael Cadenas vence prémio Cervantes

Autor de um poema que se tornou famoso na América Latina dos anos 60, Derrota, é o primeiro escritor do seu país a vencer a mais importante distinção literária do mundo hispânico.

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Poeta e ensaísta Rafael Cadenas FERNANDO ALVARADO

Aos 92 anos, o poeta e ensaísta Rafael Cadenas tornou-se o primeiro escritor venezuelano a receber o prémio Cervantes, no valor de 125 mil euros, o mais prestigiado galardão literário do mundo hispânico. A escolha foi anunciada esta quinta-feira ao final da tarde, em Madrid, pelo ministro da Cultura espanhol, Miquel Iceta, a quem coube ler a nota do júri, que reconheceu em Cadenas “a transcendência de um criador que fez da poesia uma razão da sua própria existência e a levou a alturas de excelência” em língua espanhola.

Nascido em Barquisimeto, capital do estado venezuelano de Lara, em 1930, Rafael Cadenas publicou o seu primeiro livro de poemas, Cantos Iniciales, quando tinha apenas 16 anos, e envolveu-se igualmente muito cedo na militância política, aderindo ao Partido Comunista. Com a chegada ao poder do ditador Marcos Pérez Jiménez, em 1952, chegou a passar pela prisão antes de procurar refúgio na ilha da Trindade, onde viveu quatro anos.

A experiência do exílio forneceu-lhe material para mais dois livros – Una isla (1958) e Los cuadernos del destierro (1960) – que publicou já após o seu regresso à Venezuela. E em 1963 publicou num jornal aquele que é ainda hoje o seu poema mais famoso, Derrota, depois incorporado no livro Falsas Manobras (1966). “Eu (…) que fui humilhado por professores de literatura/ que um dia perguntei em que podia ajudar e a resposta foi uma gargalhada/ que nunca poderei construir um lar, nem ser brilhante, nem triunfar na vida/ que fui abandonado por muitos porque quase nunca falo/ que tenho vergonha de actos que não cometi/, que perdi um centro que nunca tive (…)”, escreve Cadenas nesse auto-retrato derrotista, que lembra um pouco o Poema em Linha Recta de Fernando Pessoa, e que se tornou um poema icónico, não apenas na Venezuela, mas em toda a América Latina, num tempo em que muitos jovens latino-americanos se sentiam impotentes para levar por diante as mudanças com que sonhavam.

Nas raras entrevistas que deu, Cadenas tem sublinhado que já não se revê nesse longo lamento escrito durante uma profunda depressão, reconhecendo apenas a verdade desse verso em que afirma que quase não fala.

Professor universitário de Literatura em Caracas, o poeta é também um nome importante do ensaísmo literário do seu país, dimensão em que se estreou nos anos 70, com livros como Literatura y Vida ou Realidad y Literatura.

O júri do prémio Cervantes considerou a sua poesia simultaneamente “terrena e mística”, e a crítica tem-no situado na descendência de Hölderlin e Rilke, descrevendo-o como um poeta no qual a inspiração lírica – visível, por exemplo, na recolha Amante (1983) – se funde com uma acentuada dimensão especulativa e filosófica.

Radicado em Caracas, onde vive apenas com uma neta, após a morte da sua mulher, Milena, em 2017, Rafael Cadenas manteve-se sempre um homem de esquerda, mas mostrou-se desiludido com a evolução do regime chavista, e quando recebeu, em 2018, o prémio Reina Sofia de Poesia Ibero-Americana, afirmou ser “urgente instaurar a normalidade, que só pode ser democrática”, no seu país.

Em Ars Poetica, Cadenas resumiu-nos a visão que tem do seu ofício: “Não hei-de proferir adornada falsidade nem usar tinta duvidosa nem somar brilhos àquilo que é./ Para isso, tenho de me ouvir. Mas estamos aqui para dizer a verdade./ Sejamos reais./ Quero exactidões aterradoras./ Tremo quando penso que me falsifico. Devo levar em peso as minhas palavras./ Possuem-me tanto a mim como eu a elas.”

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