Há caçadores de água da neblina que querem criar novas florestas em Portugal

Quando há humidade, há partículas de água na atmosfera. Em Viseu, há “colectores de neblina” que estão a “capturá-las”. Objectivo é replantar a floresta gerindo os recursos hídricos com inteligência.

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Estas “torres” verdes são malhas metálicas com redes mosquiteiras por cima. São “colectores de neblina” Tiago Bernardo Lopes

Estamos num vale em Oliveira do Conde, freguesia de Carregal do Sal (Viseu). Abaixo do ponto onde nos encontramos, corre o Mondego. Acima, impossíveis de não ver num sítio que, fora isso, é só pedra e vegetação, erguem-se três “torres” verdes. Embora ajude a ter uma ideia do cenário, “torres” não é a melhor palavra. Em rigor, falamos de malhas metálicas com redes mosquiteiras por cima. Mas estas redes não estão lá para proteger dos mosquitos (estamos num terreno baldio, pelo que não há ninguém a proteger). Estão lá para “caçar” água.

É isso mesmo. Havendo humidade, há partículas de água na atmosfera. Quando o vento, que transporta estas partículas de um lado para o outro, leva a que “esbarrem” nas redes mosquiteiras, elas aderem a estas últimas. São “capturadas”, podemos dizê-lo.

Uma vez capturada pelas redes, a água percorre a malha metálica até cair num tabuleiro e entrar nuns tubos, que a encaminham para um depósito — um recipiente azul que, no vale em Oliveira do Conde, não dista muito das três “torres” verdes e também salta facilmente à vista numa paisagem monótona.

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Em Viseu foram instalados colectores de neblina, uma experiência para ajudar à reflorestação das zonas atingidas pelos incêndios.

Tiago Lopes

Esta água está a ser usada para regar árvores “bebés”, que por sua vez estão a ser plantadas para reabilitar um território muito afectado pelos fogos de 2017.

Estamos a descrever cenas do Life Nieblas, um projecto ibérico cujo objectivo é reflorestar zonas que foram afectadas por chamas recentes e onde não houve regeneração natural. Portugal, claro, é um país cuja floresta é todos os anos ameaçada por incêndios que comprometem a biodiversidade e libertam para a atmosfera gases com efeito de estufa. Aliás, a questão das emissões decorrentes dos fogos foi um dos temas abordados por António Costa esta terça-feira, quando o primeiro-ministro discursou na Cimeira do Clima de 2022 (COP27), que decorre no Egipto.

De volta ao Life Nieblas. O que torna este projecto com fundos europeus especialmente interessante e relevante é a forma como a replantação está a ser feita. Em vez de as instituições envolvidas estarem a recorrer a uma rega tradicional, estão a usar nas árvores bebés a água atmosférica que vem a ser capturada por protótipos de “colectores de neblina”, as tais malhas metálicas com redes mosquiteiras.

Com o planeta a atravessar uma situação delicada no que concerne à disponibilidade dos recursos hídricos, temos de saber gerir a água de que ainda dispomos, bem como puxar pela criatividade e encontrar soluções alternativas. Esta, que não requer nem grandes tecnologias nem grandes custos financeiros, pode ser uma delas.

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"Colectores de neblina" e depósito em Carregal do Sal Tiago Bernardo Lopes

​Entre as Canárias e Viseu

Liderado por uma empresa pública espanhola de planeamento do território e gestão ambiental, o Life Nieblas começou na ilha da Grande Canária, onde estão a ser replantados 400 hectares de uma floresta atingida recentemente por incêndios. Um dos parceiros do projecto é a Comunidade Intermunicipal Viseu Dão Lafões (Cim Viseu Dão Lafões), que, numa área de dimensões bem menores — só dez hectares de intervenção —, está a trabalhar em dois pontos distintos: um terreno baldio em Carregal do Sal (que fica numa área pertencente à rede Natura 2000) e uma pequena parcela do Parque Natural Vouga-Caramulo, em Vouzela.

Em Carregal do Sal (seis hectares de intervenção), foram já plantadas 4200 árvores de duas espécies autóctones de carvalho: o carvalho-roble, ou carvalho-alvarinho, e o carvalho-negral. Em Vouzela (quatro hectares), os trabalhos de replantação só deverão começar este mês, mas os “colectores de neblina” já estão montados. Serão plantadas espécies autóctones de carvalho e sobreiro.

Em ambas as localidades, estão instalados depósitos capazes de conter até 5000 litros de água. Em Espanha, o depósito é 20 vezes maior (100 mil litros), o que faz sentido, pois a área de intervenção é, também ela, muito superior.

No entanto, o processo está a ser igual em ambos os países. A ideia é reabilitar a floresta através da plantação de espécies autóctones (isto é, naturais das respectivas regiões). E as árvores estão divididas por “três sectores diferentes”, conforme nos explicam André Mota, responsável pela unidade do ambiente e da protecção civil da Cim Viseu Dão Lafões, e Paula Pereira, engenheira do ambiente que também integra a equipa do Life Nieblas.

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André Mota Tiago Bernardo Lopes

Por um lado, há o grupo de árvores que quase não foram regadas. “Houve uma rega inicial na altura da plantação, mas depois deixámo-las ficar. A única água que receberam foi a da chuva”, diz André Mota. “Esta é a plantação dita tradicional”, refere ainda.

É com os restantes dois sectores de plantação que o conceito de usar “colectores de neblina” para capturar a água presente na atmosfera entra em acção.

Papelão armazenador de água

Percorrendo o terreno baldio em Carregal do Sal, vemos, a determinada altura, uma imagem curiosa. Entre os diversos tons de verde — que são tanto das árvores que resistiram aos incêndios de 2017, como das espécies invasoras, que André Mota e Paula Pereira dizem ser uma dor de cabeça considerável neste terreno —, avistamos algumas manchas brancas, bem como tons de cinzento.

Estamos a olhar para arames que são redes de galinheiro (os tons de cinzento), algumas das quais estão ainda cobertas por redes mosquiteiras (as manchas brancas).

Cada rede de galinheiro está a envolver uma árvore “bebé”. Com as que têm as redes mosquiteiras por cima, está a ser testada a mais-valia de “colectores de neblina individuais”. A teoria é a seguinte: cada rede mosquiteira captura as suas partículas de água, que, depois de se condensarem, caem no solo (é a força da gravidade em acção) e regam a respectiva árvore.

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Redes de galinheiro e redes mosquiteiras Tiago Bernardo Lopes
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Árvore cresce envolta num "colector individual" Tiago Bernardo Lopes

Este sector, o das árvores com os “colectores individuais”, é o segundo de três. Para encontrarmos o último, temos de continuar a percorrer o terreno baldio e descer um pouco mais.

Descemos e vemos, espalhados pelo solo, o que parecem ser vários discos de papelão, cada um com uma espécie de torre ao meio. O que é isto? São cocoons [casulos, numa tradução literal], diz-nos André Mota. “Cocoons?”, perguntamos. André Mota explica que são “reservatórios individuais”, cada um dos quais é, de dois em dois meses, abastecido com a água que vem a ser capturada pelos três grandes “colectores” de que falávamos no início (as três “torres” verdes).

André Mota levanta um dos discos e, subitamente, percebemos tudo. Eles são as tampas de “bacias” feitas, também elas, de papelão. Nestas “bacias”, que conseguem conter até 30 litros de água sem o papelão ficar inutilizável, há uma espécie de compartimento com a forma da base de um cone. Em cada cocoon, este compartimento está com pedaços de terra onde estão a crescer árvores plantadas recentemente pela equipa do Life Nieblas.

Árvore cresce dentro de um cocoon Tiago Bernardo Lopes
André Mota abre a tampa de um dos cocoons Tiago Bernardo Lopes
Conjunto de cocoons Tiago Bernardo Lopes
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Árvore cresce dentro de um cocoon Tiago Bernardo Lopes

“Como este papelão é poroso, a água vai, por percolação, saindo gradualmente. Isto permite que o solo fique mais húmido, o que é benéfico para as árvores”, explica André Mota, que nos diz que cada cocoon tem um tempo de vida útil de aproximadamente 12 meses — após os quais acontece a decomposição deste material biodegradável.

“Passado um ano, as árvores já não são tão sensíveis, o que quer dizer que já não precisam tanto disto. Além disso, a humidade do local será suficiente para elas, tendo em conta que estamos a falar de espécies autóctones. O período crítico é mesmo esta fase inicial, em que a taxa de sobrevivência costuma ser mais baixa”, acrescenta André Mota, dizendo que há cerca de 300 cocoons em Carregal do Sal (e que, em princípio, haverá 200 em Vouzela).

“Estupidamente simples”

Paula Pereira fez, em Setembro, uma primeira monitorização do crescimento das árvores, cerca de seis meses após o fim dos esforços de plantação. A engenheira do ambiente, que avaliou indivíduos de cada um dos três sectores (plantação sem rega, “colectores individuais” e cocoons), diz que, embora ainda não tenha dados numéricos, consegue afirmar com segurança que estes casulos são importantes.

As árvores que têm crescido com o seu auxílio estão a desenvolver-se “muito bem”, assinala, dizendo que até mesmo aquelas que se encontram plantadas em zonas com um solo “mais rochoso e pobre” estão no bom caminho. Quanto aos “colectores individuais”, estes ajudaram as respectivas árvores a registar um crescimento “bom”, embora este seja, por comparação, menos excelente. Por último, houve uma “grande” taxa de mortalidade no grupo das árvores que quase não foram regadas.

“Em termos de acessos, o sítio onde fizemos a primeira plantação é muito mau. Para a próxima, vamos plantar árvores numa zona mais perto do caminho, para ver se conseguimos fazer alguma rega manual”, adianta Paula Pereira.

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Paula Pereira Tiago Bernardo Lopes

O Life Nieblas começou em 2020 e deverá durar quatro anos. O objectivo, resume André Mota, é “provar que os ‘colectores de neblina’ funcionam”, para que depois possam ser “usados noutros territórios, com outras características”.

“Isto é uma coisa que, sendo extremamente arcaica — são só malhas metálicas, redes mosquiteiras e pedaços de papelão —, funciona. É o chamado ‘estupidamente simples’”, diz.

André Mota refere que, embora os “colectores de neblina” também sejam conhecidos como “colectores de nevoeiro”, não é necessário haver nevoeiro, que se distingue da neblina por condicionar mais a visibilidade, para a captura de água ser possível. “O que importa aqui é a humidade. O nevoeiro dá um teor de humidade mais elevado, mas não é preciso haver nevoeiro para haver muita humidade na atmosfera.”

A explicação esclarece-nos. Mas leva a perguntas. Estes “colectores de neblina” portam-se bem no Verão? E, num contexto de alterações climáticas, conseguirão ser úteis num clima progressivamente mais seco? “É claro que no Verão há menos colheita, mas, se houver neblina no ar, colhe-se sempre alguma coisa. Sobre as alterações climáticas... Mesmo que no futuro o clima fique ainda mais seco, haverá sempre alguma humidade. E essa humidade, por pouca que seja, é vital.”