Na passagem de porco para humano, a velocidade da electricidade num coração muda

Estudo sobre o primeiro coração de porco transplantado para um ser humano mostra que o sistema de condução eléctrica do órgão mudou. Os valores deixam os do porco e passam a ser quase os dos humanos.

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O coração de porco geneticamente modificado UNIVERSIDADE DE MARYLAND

Foi uma das grandes novidades do ano de 2022: em Janeiro, era anunciado o primeiro transplante de coração geneticamente modificado de porco para um ser humano. Tinha sido realizado nos Estados Unidos e David Bennett era o nome do homem que o tinha recebido. Em Março, acabaria por morrer. Aos poucos, cientistas e médicos têm vindo a perceber melhor o que aconteceu nesse feito. Esta semana surgiram os resultados preliminares de um estudo sobre o sistema de condução eléctrica do coração de porco em humano – o transplantado tinha diferenças assinaláveis em comparação com o órgão num porco, ou seja, houve uma mudança da velocidade em que a electricidade viaja no coração.

Há mais de 30 anos que cientistas investigavam transplantes de órgãos de porco para humano. E, no mês de Janeiro de 2022, foi possível fazê-lo a David Bennett, de 57 anos, que tinha uma doença cardíaca grave. O coração de porco foi modificado geneticamente. Os genes alterados tinham permitido que fosse transplantado para este homem. David Bennett viveu ainda 61 dias depois do feito.

Há todo um cenário que agora – e na altura, claro –​ tem de ser entendido e de forma mais aprofundada. O risco de rejeição e o de uma potencial infecção são duas das questões que logo se levantam, mas há mais. Qual foi a velocidade a que a electricidade viajou no órgão transplantado? Aqui, entra a análise do electrocardiograma, que foi feita pela equipa de Timm Dickfeld, director da investigação de electrofisiologia da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos.

A equipa monitorizou então o coração de porco no humano depois do transplante com electrocardiogramas. Desta forma, conseguiu analisar-se o sistema de condução eléctrica do coração de porco modificado. Este sistema é composto por células tanto diferenciadas como especializadas, que acabam por formar nódulos e um feixe de condução de impulsos cardíacos.

Houve sobretudo três “medições” que a equipa teve em conta: o intervalo PR, que é o tempo em que o impulso eléctrico viaja desde o nó sinusal até ao nó auriculoventricular (estruturas anatómicas do coração); o intervalo QRS, que representa a despolarização ventricular; e o QT, que é o tempo que se leva para o músculo cardíaco voltar à linha de base e iniciar o próximo batimento cardíaco.

“[Todos esses intervalos] foram mais longos no coração de porco transplantado do que num coração de porco no corpo de um porco”, resume ao PÚBLICO Timm Dickfeld. Num porco, o intervalo PR é entre 50 e 120 milissegundos, mas o transplantado chegou a ter 190 milissegundos. No porco, o QRS tinha entre 70 e 90 milissegundos, mas no humano tinha 138 milissegundos. Enquanto no suíno o QT tinha entre 260 e 380 milissegundos, em David Bennett estava nos 538 milissegundos. Estas são as medições do primeiro electrocardiograma.

Depois, o intervalo PR foi permanecendo estável após o transplante e a duração do QRS também se manteve prolongada (embora mais tarde tenha encurtado). A média do QT foi de 509 milissegundos, com flutuações.

Os valores observados no coração transplantado costumam ser obtidos num coração humano, sendo que algumas das medições ultrapassaram esses valores típicos, de acordo com a equipa. “No coração humano, quando estes parâmetros são mais longos, isto pode indicar sinais de doenças do miocárdio”, refere o investigador num comunicado sobre o trabalho. “Os parâmetros de electrocardiograma do coração de porco estenderam-se para o que vemos num coração humano e, frequentemente, para medições até maiores para o que consideramos normal no coração humano.”

E esses valores dos intervalos terão tido algum efeito no resultado do transplante? Timm Dickfeld diz que não há provas de que os valores observados tenham tido algum efeito no desfecho do transplante. “David Bennett não precisou de nenhum tratamento para as observações que fizemos com o electrocardiograma”, acrescenta. Os resultados agora divulgados foram apresentados esta segunda-feira nas Sessões Científicas da Associação Americana do Coração.

A equipa espera que os resultados sejam importantes para futura investigação sobre os efeitos de transplantes de órgãos de porco em humanos.

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