Jornais Escolares

“O Fernando Moital mudou muitas vidas.” Edição especial do Horta das Notícias

Amigos e familiares juntaram-se numa escola de Évora para homenagear “uma pessoa muito especial”, também para o jornal escolar.

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É sábado à tarde e as ruas de Évora não escondem que acabou de chover. No recreio da E.B. 1 da Horta das Figueiras, crianças correm entre os pneus que são usados para as suas brincadeiras nos intervalos. Uma menina de galochas amarelas salta para cima das pequenas poças de água que se formaram. O dia está cinzento, já chegou o outono. Mas há qualquer coisa no movimento da escola que dá desde logo a entender que não é apenas mais um dia. Lá dentro, crianças e adultos dirigem-se ao mesmo espaço. “Bem-vindos e bem-vindas à homenagem ao Fernando Moital”, ouve-se.

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Fernando Moital, em abril de 2021, no programa "Põe a tua Escola no Mapa", do PÚBLICO na Escola

Faz um mês que Fernando Moital, o elo de ligação entre as pessoas que enchem a sala comum da Escola Horta das Figueiras, morreu, aos 54 anos. Nas semanas anteriores, Sarah Rodrigues, de 13 anos, e Mariana Baião, de 12, tinham decidido preparar-lhe uma surpresa: fazer uma edição especial do jornal Horta das Notícias dedicada ao Fernando, seu grande impulsionador. Os adolescentes que começaram o jornal e as crianças que o continuam podiam escrever textos e fazer desenhos; alguns adultos também. Sabiam que ia gostar. Afinal, foi graças ao entusiasmo e incentivo do pai do colega João Moital que nasceu o jornal escolar que já vai na 31.ª edição.

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Breno Pessoa com a edição especial do jornal, junto à "Bela Sombra"

Era dezembro de 2019, férias do Natal, quando João Moital, Breno Pessoa e Filipe Cid, na altura alunos do 4.º ano, começaram a experimentar escrever notícias e imprimir as páginas, para passar o tempo. A brincadeira acabou por ser o número zero do Horta das Notícias, o projeto que Fernando tinha em mente há muito tempo. Um dia, perguntou a Sarah Rodrigues se queria ser a paginadora. “Adorava!”, respondeu-lhe. Assim teve início o projeto de forma mais “oficial”. O trabalho que começaram a desenvolver na comunidade — e que tem como ponto de partida a escola, mas não fica preso no perímetro do edifício — valeu-lhes o prémio de melhor jornal do escalão do 1.º ciclo no Concurso Nacional de Jornais Escolares 2019/2020.

Moital não chegou a ver a edição especial agora publicada. Mas a comunidade informal por ele criada em torno da escola e do jornal organizou um momento de celebração da sua vida em conjunto. Seria uma forma de apresentar publicamente a edição do Horta das Notícias que lhe dedicavam, e que contou com o apoio da Fundação Eugénio de Almeida e do Centro de Inovação Social, mas também de relembrar os seus ensinamentos.

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Alunos leram em voz alta os textos que escreveram para o jornal dedicado a Moital

Esteve presente de muitas formas: na Traquitana, o objeto que funciona como “uma espécie de quadro de notícias” e que foi pensado depois do prémio do Concurso Nacional de Jornais Escolares; nas memórias de miúdos e graúdos eternizadas em texto, publicadas no Horta das Notícias; em vídeos de intervenções públicas em que expunha alguns dos seus ideais. A própria organização do evento foi “à Moital”: “Um encontro ao fim-de-semana, com a escola de portas abertas, cheio de crianças, adolescentes e adultos”, explica Joana Portela, mãe de Sarah Rodrigues e amiga de Fernando.

“Ajuntador de improváveis"

“O meu grande amigo chama-se Moital. O meu grande amigo, do qual eu gosto muito, brinca connosco, cria jornais, desenha projetos.” É assim que começa o texto de Álvaro Mendes, aluno do 4.º ano, para a edição especial do Horta das Notícias. Quando o lê em voz alta, rodeado pelos seus colegas e amigos mais velhos, quem o ouve sorri. É também assim que Sarah Brabec, de 11 anos, descreve o homenageado em palavras suas: “Foi um amigo adulto que tive.” “Normalmente os adultos não nos compreendem tão bem como o Fernando Moital compreendia”, disse mais tarde ao PÚBLICO na Escola.

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Sarah Brabec: “Normalmente os adultos não nos compreendem tão bem como o Fernando Moital compreendia”

Sarah Brabec fez parte do grupo fundador do Horta das Notícias. Foi precisamente neste dia, 22 de outubro, mas de outro ano, que se mudou do Brasil para Évora com os pais. A Horta das Figueiras foi a primeira comunidade que ali encontrou; Évora, a cidade em que viveu “muitos momentos incríveis proporcionados pelo Fernando Moital”. E mesmo agora, que vive em Vila Viçosa, não esquece os passeios na ecopista e os piqueniques que o seu “amigo adulto” dinamizou.

Este amigo adulto, frequentemente avistado nas ruas de Évora a pedalar na sua bicicleta vermelha, era conhecido por falar com as crianças de igual para igual. Dava-lhes ferramentas para se expressarem com confiança e para questionarem o mundo — recorda Joana Portela. Foi exemplo disso o Horta das Notícias, mas também o projeto “Semeando a democracia”, uma simulação do processo eleitoral com as crianças, com direito a mesas e cabines de voto. Na altura, Moital deixou claro que sempre achou que “era possível aos mais pequenos fazer imensas coisas numa sociedade que defende o oposto”.

Professor de formação, Fernando Moital estava envolvido em muitos projetos. Patrícia Claudino, mãe de Álvaro, confessa como a impressionava a forma como o amigo se desdobrava para tornar todos os sonhos possíveis. Sonhava com um mundo mais justo, sem discriminação, onde os carros ocupassem menos espaço e mais árvores pudessem ser plantadas. Onde todos os cidadãos fossem ouvidos por igual e pudessem ter uma participação ativa na sociedade. Joana, que organizou a tarde de homenagem com Patrícia, conta que Fernando não parava de trabalhar para que esse mundo fosse possível. Fazia todas as chamadas e reuniões fora de horas que fosse preciso. Chateava quem tivesse de chatear.

“A ideia de adiar não era uma ideia do Fernando. Era preciso fazer acontecer, mesmo que as condições não fossem as ideais, não estivessem reunidas todas as circunstâncias favoráveis. É preciso fazer acontecer com o que temos”, explica Joana.

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Na tarde da homenagem, a Traquitana ocupou o centro da sala DR

Para uma cidade com menos carros, promovia a mobilidade suave ensinando as crianças a andar de bicicleta. Para um planeta mais sustentável, plantava árvores e criou um “bosque aleatório”, a “Bolotoaria”. Para evitar o desperdício de água, desenhou o projeto de um bebedouro inteligente na escola. Ilda Coelho, professora do 4.º ano e coordenadora da Escola da Horta das Figueiras, relembra que Fernando Moital não esperava “pelo Dia da Árvore para agir” — “ele dizia que o dia da árvore era todos os dias”. E, por isso, não havia um dia que fosse em que não alertasse para a crise climática e sugerisse o que todos podiam fazer para mitigar os seus efeitos.

Nas escadas que davam para o primeiro andar da E.B.1 em que surgiu o Horta das Notícias, um painel convida agora as pessoas a “indefinir o indefinível: indefinir o Fernando”. Como definir alguém que dinamizou tantos projetos, com tantas pessoas, em tantas frentes? Ao PÚBLICO na Escola, Sarah Rodrigues e Mariana Baião descreveram-no como alguém que “ajudou muitas pessoas e que era uma pessoa muito especial”. Joana Portela chamou-lhe um “ajuntador de improváveis” e, no campo pessoal, “o adulto mais importante da vida da Sarah”. Já Breno Pessoa, que também integrou a equipa fundadora do Horta das Notícias, disse que há ensinamentos que certamente ficarão consigo: “Aproveita a vida ao máximo, não importa aquilo que aconteça. Temos de aproveitar muito a vida, o ensinamento dele seria esse. E plantar árvores.”

“Belo Sobro”

Enquanto Breno Pessoa procurava as palavras para descrever o amigo que o ensinou a andar de “bicla” — e que decidiu homenagear dando o nome “Fernando” à sua bicicleta—, um grupo de adultos e crianças dava início a uma das atividades planeadas para esta tarde na Horta das Figueiras. De pá na mão, começavam a plantar um sobreiro. A ideia partiu dos adultos, mas a escolha do sítio coube às crianças. A professora Ilda Coelho lembra que se fez uma votação em cada turma e, reunidos os votos, ficou decidido que o sobreiro faria companhia à Bela Sombra, a maior árvore do recreio a que todos chamam carinhosamente “a adorável do pátio”. A maior preocupação dos miúdos era que o sobreiro fosse plantado num sítio onde não chegassem as bolas de futebol, conta ainda a professora.

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A ideia de plantar um sobreiro no recreio da escola partiu dos adultos, mas foram os mais novos a escolher o local DR

A coordenadora da escola explica que também a escolha da árvore não ficou a dever-se a um acaso. É “uma árvore do Alentejo, forte, robusta”. Quando chegarem os dias de calor, será mais uma sombra para as crianças nos intervalos ou nos encontros ao fim-de-semana na escola.

À volta do “Belo Sobro” juntam-se amigos e familiares de Fernando Moital que cuidadosamente o plantam naquela que será a sua nova casa. Há crianças a fazer desenhos no chão, outras tantas a correr pela escola, e algumas no interior da sala onde a tarde de celebração começou, para fazer desenhos ou escrever notícias para a Traquitana. A comunidade informal do Agrupamento de Escolas Severim de Faria, cujo grande dinamizador sempre foi Moital, ganha, neste momento, novos membros — mesmo que apenas por uma tarde. Sarah Rodrigues diz que é um sinal de que “o Fernando Moital mudou muitas vidas”.

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Mariana Baião e Sarah Rodrigues sentem-se parte da "Geração Moital"

A contrastar com a tarde cinzenta, esta comunidade ri alto e celebra a vida. Há um texto da edição especial do Horta das Notícias, escrito por Pedro Branco, bibliotecário da Horta das Figueiras, que traz Fernando Moital para este contraste entre um mundo cinzento que está constantemente a ser provocado por alguém que vive sempre cheio de cores. “As pessoas cinzentas chateiam-se porque o Fernando Moital lhes dá a ver que o mundo pode ser de muitas cores.” É dessa forma que também Sarah Rodrigues e Mariana Baião olham para o que foi Fernando e o que fica da sua vida:

Sarah — Eu acho que o Fernando não queria que andássemos a lamentar-nos pela sua perda, mas sim a continuar o seu legado.

Mariana — Somos a Geração Moital. E agora é continuar o jornal até termos netos!