Bolsonaro diz a jornalista português que não o entende: “Não falo espanhol, nem portunhol”

O Presidente do Brasil não terá gostado do pedido de comentário ao facto de estas eleições estarem a ser seguidas com “enorme preocupação” internacionalmente.

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Jair Bolsonaro na conferência de imprensa depois do debate ANTONIO LACERDA/EPA

O Presidente do Brasil recusou-se a responder a uma questão incómoda de um jornalista português da RTP, durante a conferência de imprensa a seguir ao último debate das eleições, realizado na noite passada (esta madrugada em Portugal), alegando que não tinha percebido o que lhe dizia porque não falava “nem espanhol, nem portunhol”.

O comentário descabido, tendo em conta que a pergunta tinha sido feita no mesmo português com que Jair Bolsonaro respondeu, embora com diferente sotaque, visou apenas contornar uma pergunta de difícil resposta e que vinha precisamente na sequência do que se falou no debate, reiterada pelo seu adversário nesta segunda volta das presidenciais, Lula da Silva.

O relativo isolamento externo do Brasil que coleccionou dissabores no panorama internacional e que se relacionou mais com líderes de condão autoritário, como Viktor Orbán na Hungria, foi salientado pelo candidato do Partido dos Trabalhadores, que elogiou o trabalho diplomático do seu Governo, em que, por exemplo, foi criado o grupo dos BRICS (sigla para Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – South Africa).

“Não entendi o que você falou”, começou por afirmar Bolsonaro sobre o pedido de comentário ao facto de em termos internacionais esta eleição presidencial brasileira estar a ser vista com “enorme preocupação”. Mas quando o jornalista se disponibilizou para repetir a pergunta, o Presidente do Brasil preferiu insultar o jornalista e os portugueses: “Se repetir, vou continuar a não entender. Não falo espanhol, nem portunhol.”

Mesmo assim, Bolsonaro acabaria por responder com um, “vamos ver se entendi aqui: estive há pouco tempo com Biden, estive numa reunião bilateral com ele e depois numa reservada”, antes de acrescentar: “O mundo árabe fala comigo”.

No debate, Lula da Silva acusara Bolsonaro de ter transformado o país num “pária” internacional: “O Brasil hoje é mais isolado do que Cuba. Você não tem relação com ninguém, ninguém quer te receber, ninguém vem aqui”. Lançando depois uma alfinetada: “Foi recebido pelo rei da Arábia Saudita, que ele acha que é democrático”.

A relação de Jair Bolsonaro com a imprensa não tem sido a melhor desde a campanha presidencial de 2018. O ainda Presidente do Brasil e candidato à reeleição, que disputa esta segunda volta com Lula da Silva, costuma criticar diariamente os jornalistas e os media, atacando quando as notícias ou as perguntas não são do seu agrado. Bolsonaro prefere usar as redes sociais e os órgãos de comunicação social que lhe são mais afectos.

A conferência de imprensa desta madrugada acabaria mesmo por terminar abruptamente, depois de um jornalista da Folha de S.Paulo, órgão de comunicação particularmente visado por Bolsonaro e os bolsonaristas, ter questionado o chefe de Estado por voltar a usar durante o debate uma notícia falsa para acusar o seu adversário político.

“O senhor voltou a repetir agora, repetiu no debate, que o ex-presidente Lula negociou a ida dele ao Complexo do Alemão com traficantes, com chefes do tráfico. Mas a imprensa toda que acompanhou a agenda, que acompanha a política do Rio de Janeiro, sabe que quem organizou aquela agenda foi o Renê Silva, um comunicador que a imprensa toda conhece há dez, 12 anos aqui no Rio de Janeiro. Então eu queria saber por que o senhor tem insistido nessa informação, nessa mentira?”, questionou o jornalista da Folha.

O Presidente, que tinha passado todo o debate a acusar Lula de mentir e de ser mentiroso, não gostou da questão e irritou-se: “Você tem moral para me chamar de mentiroso?”, lançou, antes de bater no púlpito e abandonar a conferência de imprensa.

Debate igual, mas diferente

No debate, Bolsonaro entrou ao ataque e procurou voltar a trazer o seu adversário para os temas que lhe são mais favoráveis. No entanto, desta vez, o candidato do PT não se deixou levar pelos convites armadilhados e teve melhor resposta para a questão da corrupção, mas escorregou no paternalismo e abriu a porta à discussão do aborto, que é divisiva para o seu eleitorado e prejudicial para a sua captação de voto entre os evangélicos.

O debate entre os candidatos presidenciais brasileiros, o último antes da segunda volta das eleições que se disputa no domingo, acabou por ser mais favorável a Luiz Inácio Lula da Silva que os anteriores.

O Presidente Jair Bolsonaro começou nervoso, num ataque desenfreado, com um discurso atrapalhado e desrespeitoso, num contraste com a postura calma e reiterativa do seu adversário, que escolheu não seguir as migalhas lançadas pelo candidato à reeleição, e preferiu insistir numa ideia: eu quero discutir o futuro, projectos, programas e o meu opositor não, porque não tem.

“Eu não fico no palácio a ver televisão, eu não tenho tempo para ver televisão”, disse Lula, garantindo que anda pelo Brasil a falar com o povo e não preocupado com esta ou outras tricas. Repetindo até que podia dar tempo a Bolsonaro para se juntar com os seus assessores para mudarem de tema, já que o seu oponente andava às voltas com o mesmo assunto – “eu lhe dou tempo com a sua equipa”.

Tal como noutros debates, mentira e mentiroso foram acusações reiterativas, mais na boca de Bolsonaro, mas Lula acompanhou. Só não acompanhou foi Bolsonaro no estúdio, ao contrário do anterior debate na Globo, em que a certa altura o ex-Presidente (que é bem mais alto) lhe tocou no ombro e o deixou desconcertado.

Com isso, na primeira parte do debate, o que se via era um Bolsonaro a esbracejar demasiado, cirandando mais pelo estúdio (chegou a convidar o seu adversário a ficar ao pé dele) e um Lula mantendo a distância, indo para o palanque quando falava o seu adversário, vindo quando precisava ele de intervir, e fazendo-o directamente para a câmara na maioria das vezes.

Só que a determinada altura, certamente a conselho dos seus assessores, o Presidente descobriu melhor como agir no centro do estúdio que o seu opositor lhe deixava vazio, e Lula continuou a insistir na mesma tecla, transparecendo algum paternalismo, mesmo sobranceria, talvez até arrogância a certo momento.

Lula voltou a falar em Deus (para tentar captar uma pequena percentagem que seja do voto evangélico) e Bolsonaro acabou a usar o seu bordão de “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” – antes já tinha aproveitado dez segundos que lhe sobravam para abrir os braços no ar para agradecer a ajuda divina. O ex-Presidente insistiu muito na questão da pandemia, da saúde, acusou Bolsonaro de, por causa da sua teimosia, ter deixado morrer 300 mil pessoas que podiam ter sido salvas durante a pandemia da covid-19.

E se Bolsonaro ficou calado quando Lula leu os feitos dos seus Governos em matéria de saúde, estranhamente o candidato do PT não foi contundente na questão do desmatamento da Amazónia e na comparação da área desmatada entre os números deste mandato e os dos seus dois mandatos na presidência.

Pobres

Além da saúde, um dos grandes temas do debate foi o combate à pobreza, onde Lula voltou a aproveitar para defender o legado dos seus governos que retiraram muitos milhões de brasileiros da pobreza e a acusar Bolsonaro de não ter aumentado o salário mínimo e as pensões além da actualização da inflação.

O actual Presidente defendeu-se, disse que mesmo com a pandemia o PIB brasileiro voltou a subir, falou no Auxílio Brasil que permitiu dar 20 reais por dia aos mais pobres, quando o limiar da pobreza está nos dez reais por dia, e comparou os 600 reais do Auxílio Brasil com os 190 reais do Bolsa Família dos tempos do Governo Lula.

Em vez de se referir à inflação e sem enveredar em comparações entre o que representam hoje 190 reais actualizados com essa inflação, Lula afirmou que os seus programas sociais iam muito além do Bolsa Família e que incluíam, entre outras coisas, a merenda escolar para as crianças mais carenciadas (cujo valor o Governo Bolsonaro nunca actualizou, disse).

O aceso do debate e o excesso de linguagem levaram os dois lados a pedir múltiplos direitos de resposta, considerando-se atacados na sua honra, mas todos iam sendo negados pela produção e só Lula teve um pedido atendido. Isto é, o apresentador do debate, o jornalista William Bonner, deu-se a si próprio um direito de resposta, para contestar Bolsonaro que o acusara de lavar a ficha criminal de Lula.

“Processo por corrupção para cima de mim, Lula? Qual é? Fala de mim. Ó Lula, você dizer que foi absolvido? Só se foi pelo Bonner, se ele vai repetir aqui que você foi absolvido. Acho que Bonner vai ser indicado para um impossível Governo teu para ser Ministro do Supremo Tribunal Federal”, disse o Presidente.

“Eu de facto disse que Lula não deve nada à Justiça”, referiu o moderador, “mas como jornalista não digo coisas tiradas da minha cabeça. Digo com base em decisões fundamentadas no Supremo Tribunal Federal”.

No fim, os dois candidatos acabariam a falar directamente para a câmara nas suas alegações de encerramento, com Bolsonaro a ter um lapso e a falar na sua campanha para “deputado federal” (que foi durante 27 anos); e Lula a agradecer a Deus, que ele já invocara no princípio do debate, e a falar no Ministério da Educação do seu Governo como “o maior vendedor de livro do mundo”.

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