Viver sem pressa

Massa azeda. Tempo. Durante algum tempo, entretive-me a imaginar uma linha industrial de fabrico de pão e, num contraste paralelo, imagens da massa mãe deixada a azedar durante alguns dias.

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"Sou um grande apreciador de pão e abomino pão feito em série" Nelson Garrido/Arquivo

Há cerca de duas semanas, quando me encontrava numa deambulação a pé pelo interior do país, entrei numa padaria/pastelaria e, após inquirir brevemente o simpático padeiro sobre o tipo de pão que vendia, comprei um de trigo de quilo para o caminho. Havia tomado um valente pequeno-almoço há pouco mais de uma hora e não tinha fome rigorosamente nenhuma. No entanto, a rota afastar-me-ia durante bastante tempo de qualquer povoação, pelo que, seguindo o ditado “Com pão e vinho, anda caminho”, preveni-me da fome vindoura com pão e uma garrafa de água. (Era cedo para vinho). Paguei e saí. “Pão quente, fome mete”, reza outro ditado. E logo o cheiro do pão quente acordou a minha gula. Em menos de um minuto, estava a desbastar o pão. Queimei os dedos para arrancar um naco, mas valeu a pena. O pão era delicioso. Para ser perfeito, só faltou a manteiga.

Depois de devorar um quarto do pão, voltei à padaria. O padeiro olhou-me com estranheza, talvez imaginando que eu voltara para reclamar de alguma coisa.

– Então, amigo, o que se passa? – perguntou-me o padeiro com cortesia, mas reticências.

– O que se passa é que tem aqui um belo pão! – exclamei.

– Ah, obrigado – respondeu-me sorrindo, desarmado pelo elogio.

Prossegui:

– Sabe, sou um grande apreciador de pão e abomino pão feito em série, sem sabor, sem alma, sem nada. E cada vez é mais difícil comprar pão de jeito. Está a ver aquelas carcaças que havia antigamente? Eu, quando era miúdo, comia três ou quatro ao pequeno-almoço! Agora já não se encontra em lado nenhum, está tudo cheio de químicos, fermento e melhorantes, essas coisas. São os cacetes que ficam emborrachados ao fim de meia dúzia de horas ou as carcaças que secam num instante e que não sabem a nada – desabafei, à procura de cumplicidade.

– Pois… – respondeu, ajeitando o pão na vitrina à sua frente.

– Já nem é bem pão – continuei –, eu acho que já nem farinha devem usar. Ou então usam pouca, não é? – perguntei, encolhendo os ombros.

– Eu não gosto de falar do que os outros fazem, mas tenho de lhe dar razão… – respondeu, com cerimónia, baixando novamente os olhos para a vitrina. – Aqui, também uso fermento químico, não ando a dizer que vendo pão biológico nem nada disso, mas a percentagem é aquela que é a indicada para que o pão não fique a saber a químico ou com o miolo todo encharcado.

– O pão tem de saber a pão, claro! – intervim.

– Depois, há aquele pão antigo que fazemos com massa azeda, assim como esse que comprou. Mas quer que lhe diga uma coisa? Nem toda a gente gosta desse pão e acabo por fazer pouco. E, já sabe, quem tem uma casa aberta tem de se adaptar e fazer aquilo que as pessoas comem. Mas para quem aprecia pão à antiga, temos sempre esse… – disse, apontando para o meu saco de pão.

Pedi-lhe para me por duas carcaças num saco e meia dúzia de biscoitos (jurou-me que eram caseiros; não era preciso, reconheço um biscoito caseiro à distância) noutro. Paguei e estendi-lhe a mão para me despedir. O padeiro saiu de trás do balcão a bater as mãos uma contra a outra para sacudir a farinha.

– Deixe lá isso, homem, venha de lá a mão com farinha que é sinal que a usa para fazer o pão – gracejei.

Estivemos meia hora à conversa. Entrei de noite, saí com o dia já claro. A conversa fluíra, sem pressa. Tal qual o processo na origem da massa azeda utilizada no pão que levava no saco e no bucho. Massa azeda. Tempo. Durante algum tempo, entretive-me a imaginar uma linha industrial de fabrico de pão e, num contraste paralelo, imagens da massa mãe deixada a azedar durante alguns dias para depois ser acrescentada à farinha, à água e ao sal. Pão artesanal. Tempo. O tempo pode saborear-se das mais diversas formas. Ingerir pão artesanal é ingerir tempo.

À medida que me afastava da padaria, fui recordando algumas coisas que o padeiro me dissera. “Aqui, o pão é feito a pensar nas pessoas que o comem, não nos bolsos do patrão, que até sou eu. Não estamos preocupados em fazer o mesmo que os outros. Se os outros ganham mais, que ganhem.”

”Vou escrever um texto sobre esta conversa”, disse-lhe a dada altura. Sorriu, agradeceu e pediu-me que não dissesse quem era e de onde era. “Não quero que digam que me estou a armar em bom”, justificou.

E se há padeiro que se podia armar em bom era este.

Através da janela de uma casa deserta vi um casal à mesa. A distância era pouca e percebi que o que levavam à boca era pão. Segundos depois, o homem levou a caneca à boca e, enquanto a pousava, olhou pela janela, fixando o seu olhar no meu. Parado sob a luz do poste, senti-me completamente exposto e envergonhado por invadir a privacidade do casal. Desviei o olhar e recomecei a andar. Meia dúzia de passos adiante, não resisti e espreitei novamente. O homem e a mulher continuavam a mastigar o pão. Possivelmente com manteiga, o que me fez salivar um pouco. Questionei-me depois se seria um pão como o que eu levava no saco ou um químico em forma de pão e tive vontade de me aproximar, bater na janela e perguntar. Mas segui caminho, naturalmente, não tinha nada a ver com isso.

– Se tiver tempo, eu ensino-lhe como se faz um bom pão – disse-me o padeiro.

– Tempo não me falta – respondi.

– Isso é raro – replicou.

– Eu sei, mas escolhi viver sem pressa

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