A senhora sou eu

Não se nasce senhora, torna-se senhora. Nasce-se miúda, pirralha, menina. E um dia, sem darmos por isso, somos senhoras.

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"Não há formas certas de se ser senhora" Velizar Ivanov/Unsplash

A primeira vez é a que dói mais. Na fila de uma repartição: “A senhora, se faz favor?” Olho para trás, em busca da tal senhora que provavelmente ultrapassei sem querer, até perceber que não está ali mais ninguém e que é a mim que se dirigem. A senhora sou eu. Os meus ténis desbotados e a minha camisola de capuz já não bastam para atenuar a evidência.

No supermercado, outra vez. “Deixa a senhora passar”, diz um rapaz a outro. Avanço, cabisbaixa, a sentir um ardor na garganta e um vazio existencial. Imagino-me cheia de laca no cabelo e artroses.

Chegou o momento. Não se trata só do medo de envelhecer. À medida que me aproximo da idade das mulheres de Balzac, já contava que me fosse invadir a angústia de deixar a juventude para trás. O que não esperava é que este processo não se notasse só no espelho ou nos hábitos, mas também nas palavras. E que fosse uma questão linguística. Esta forma de tratamento que se inicia é a que me acompanhará até ao fim. De agora em diante, sou senhora. Senhora é um espectro que vai, pelos vistos, desde agora até às derradeiras visitas no lar de idosos.

Não se nasce senhora, torna-se senhora. Nasce-se miúda, pirralha, menina. E um dia, sem darmos por isso, somos senhoras. Qual será o momento em que se passa de um estado a outro? Qual será o indicador que anuncia ao inconsciente colectivo que ascendemos a esta nova condição? Não é o penteado de cabeleireiro, meio cogumelo, porque esse já eu tinha aos dois anos de idade e nem por isso era senhora. Também não são os saltos altos, porque já os usava nas saídas à noite aos 16 anos e nem isso nem os quilos de maquilhagem, para meu desconsolo, me davam mais idade do que a que tinha. Também não é necessariamente a maternidade, embora esta possa contribuir para uma certa curvatura das costas e um afundar das olheiras que talvez me pesem.

Será uma ruga específica que despontou? Uma falta de noção da quantidade de perfume que ponho? Um desalento nos olhos? Uma tendência maior para calças de cintura subida?

Senhora, para mim, tinha várias acepções. Havia, claro, a Nossa Senhora. Mas também havia a Senhora Maria, de Tondela, e a expressão machista que ouço de vez em quando: “Ela é uma senhora”, como quem diz: “Não é cá uma vadia”. Não me apazigua pensar que me aproximo de qualquer uma das três. Mas há um factor que as une: As três indicam que a pessoa em questão não se trata de uma menina.

Recentemente, em França, a dor que já estava entorpecida voltou em toda a força quando me chamaram Madame. Estava a conformar-me com o facto de já não ser menina, mas estava longe de pensar que também já não era Mademoiselle. Não que alguma vez tenha sido Mademoiselle, porque nunca vivi em França, mas um simples “Madame” bastou para fazer o luto de todos esses anos em que poderia ter sido Mademoiselle.

Não há volta a dar. Tornei-me senhora. Posso entrar em negação, posso assumir o papel, ou posso alternar de forma alucinada entre uma coisa e outra, que é o que tenho feito. Ora me sinto a caminhar com a elevação da Rainha de Inglaterra, ora saltito como uma menina de 11 anos. Ora cheiro e abano o copo de vinho antes de prová-lo, ora me lambuzo com um Perna de Pau. Ora quero ficar sossegada de manta, ora quero percorrer o mundo.

Não há formas certas de se ser senhora. Uma vez que nos é dado este título, podemos fazer-lhe jus como bem entendermos. É-nos dado de fora, mas por dentro podemos escolher como vamos usá-lo. Uma senhora será sempre alguém que sabe como é ser-se menina. Talvez a vantagem de ser senhora seja essa mesmo, a de poder escolher.

O nome assusta, mas eu encontrei a forma de dar a volta a isto e de me apaziguar com o termo. Sou senhora, sim. Cada vez mais senhora de mim.

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