A escola e a dominação insustentável do sistema burocrático

É sabido que a ordem burocrática é uma ordem infeliz e pessimista. Que perdura porque desresponsabiliza, securiza e protege. Porque cria a ilusão do poder e do controlo.

O sistema burocrático concebido, na sua versão moderna, por Max Weber funda-se no carácter legal das normas e regulamentos, na formalidade das comunicações, na divisão do trabalho racional, na impessoalidade das relações, na hierarquia da autoridade, na estandardização de rotinas e uniformidade de procedimentos, na valorização da competência técnica e na meritocracia, na separação entre propriedade e administração, na profissionalização, e na suposta previsibilidade do funcionamento.

Não obstante as suas vantagens em relação a sistemas de gestão artesanais, a burocracia funda-se em pressupostos ingénuos e negativistas, e supõe uma realidade social, política e organizacional que não existe. Por isso, muitas vezes, a lógica burocrática é insensata, cega, infantilizante e fechada.

Uma ação é insensata quando se deixa determinar pelo formalismo vazio de sentido, quando as decisões não têm em conta as pessoas, as organizações e as especificidades do contexto, quando a análise se enclausura na razão técnica (estabelecendo a relação meios/meios) e não se deixa orientar pela razão crítica (estabelecendo a relação meios/fins), quando as consequências nunca são interrogadas.

É sabida a forte presença da lógica burocrática na “organização política e administrativa da nação”. E também no sistema de ensino, desde o topo à base. Uma presença marcada pelos traços da uniformidade, formalismo, impessoalidade, legalismo e pelo peso centralista.

É sabido que a lógica burocrática conduz (e é intrinsecamente) muitas vezes a uma ação insensata. É o caso dos grandes concursos públicos centralizados de aquisição/distribuição de bens e equipamentos às escolas. Equipamentos que, muitas vezes, as escolas não querem e que permanecem encaixotados. É o caso dos relatórios de “reflexão crítica” para mudança de escalão. Vazios (a maioria) de qualquer razão, de qualquer efeito, de qualquer sentimento. É o caso do sistema de recrutamento e colocação de professores que só se mantém alimentado pelo culto da aparência da igualdade e da justiça. É o caso das delegações de competências ministeriais. E das subdelegações. E das subsubdelegações. É o caso do controlo de assiduidade dos alunos (designadamente no Ensino Secundário). É sabido que a ordem burocrática é uma ordem infeliz e pessimista. Que perdura porque desresponsabiliza, securiza e protege. Porque cria a ilusão do poder e do controlo.

Mas é também um sistema desligado do real. Como refere o sociólogo suíço, Perrenoud, o sistema soviético afundou-se, entre outras razões, porque interditava de dizer as coisas como elas eram. Se o futuro era sempre radioso, se o partido tinha sempre razão, se o plano era sempre perfeito, se o fracasso estava por definição excluído, era impossível partilhar uma análise e definir um programa de ação. Salvaguardando todas as proporções, a escola sofre o mesmo problema. Cada um sabe que os programas não se podem cumprir integralmente, que certos horários são absurdos, que o sistema de colocação de professores é uma mentira, que os apoios pedagógicos são muitas vezes uma ficção, que o ensino especial é uma falácia, que a reorganização curricular tende a ser uma mistificação, que..., que...

Quanto tempo será necessário, quantas crises larvares teremos de suportar, para que se possa dizer o que toda a gente sabe e agir em conformidade? Estará a escola condenada a não ver, a não dizer, a não agir? A interditar uma lucidez coletiva? Não basta que cada um, no seu canto, em silêncio, perca as suas ilusões e assuma os seus lutos, pois isso favoreceria o divórcio entre as pessoas e as organizações. Somente a lucidez partilhada permite afrontar a complexidade e trabalhar para sair dos labirintos. Somente uma coragem cada vez mais alargada permite o resgate das prisões de ver.

Todos somos agentes deste reino da aparência e do faz de conta. Todos temos a nossa quota-parte de responsabilidade neste estado de sítio. Só uma política comprometida e ousada poderá ir abrindo caminhos. Os caminhos da transparência, da liberdade, da autonomia, da responsabilidade, da confiança.

O sistema burocrático é também fechado, extremamente defensivo e infantilizante para os professores. Quando surge algo de novo (um programa, uma nova área curricular, um novo regime de avaliação, um novo esquema de horário....), logo se reclama uma circular para se saber que atitude se deve adotar, ou então, numa versão mais pós-moderna, logo se protesta porque não há/não houve formação. E até os sindicatos (que deveriam prestigiar a profissão docente) logo também concordam, confessando uma perspetiva proletária. Vivemos num sistema quase feudal porque tudo é programado no topo hierárquico. No centro político e administrativo impera a lógica da desconfiança e a ilusão de que tudo se pode regulamentar.

Ao nível intermédio procede-se à reduplicação e ao reforço da concentração do poder. No fundo da escala, executa-se (muitas vezes, cria-se a aparência de que se executa) e pede-se constantemente novas circulares que desresponsabilizam e protegem. Neste ciclo vicioso da dependência, só uma revolução no modo de governo é que nos pode retirar deste estado de sítio. E não deixa de ser paradigmático que um dos instrumentos legais mais promissores para pôr fim a esta ordem, previsto no decreto-lei 115 de 1998 e retomado nos seguintes (75/2008 e 113/2012) – os contratos de autonomia –, continue letra morta – não obstante a recente proliferação de simulacros de autonomia. E mesmo o relativo avanço do Decreto-Lei 55/2008 e a abertura para a celebração de Projetos Piloto de Inovação Pedagógica tem tido tímidos avanços de adesão.

Nove ministros passaram – Grilo, Oliveira Martins, Santos Silva, Júlio Pedrosa, David Justino, Lurdes Rodrigues, Isabel Alçada, Nuno Crato, Tiago Rodrigues e preferiram não mexer no statu quo da centralização burocrática. Foi a aliança de interesses que nos vai mantendo reféns no medo de existirmos. Na gritante ausência das liberdades de criar e de ousar sair do molde onde tudo tem de caber. Com o Ministro João Costa afirma-se a vontade de saída dos labirintos, em diversos domínios da ação [revisão da Lei Orgânica, Revisão do Modelo de Recrutamento e colocação de professores, revisão do Modelo de Avaliação docente….. Oxalá o Minotauro não lhe cerceie a vontade e a possibilidade de agir.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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