As escolas gueto um dia hão-de ser mais

As escolas gueto são as escolas invisíveis, onde se desmaia com fome. São os locais da verdadeira resiliência, onde corpo e cabeça – acordados de madrugada para ali poderem estar tombam de cansaço às primeiras horas da manhã. São as escolas do real multiculturalismo, onde na mesma turma as mais variadas nacionalidades, línguas e dialectos se misturam.

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Daniel Rocha

Estamos habituados a que as escolas privadas tenham a má política de seleccionar os seus alunos com o propósito de obter bons resultados, inaceitável é que seja o próprio sistema público a selecionar crianças e jovens para as escolas guetos.

Zonas Urbanas Sensíveis” foi a etiqueta escolhida pelo sistema para as comunidades mais desfavorecidas. Mas o sistema não se ficou apenas pela mera adjectivação, antes a materializou, apontando primeiro e disparando depois, acertando em cheio no futuro de centenas de crianças e jovens, erguendo guetos escolares e hipotecando futuros.

As escolas gueto são as escolas invisíveis, onde se desmaia com fome. São os locais da verdadeira resiliência, onde corpo e cabeça – acordados de madrugada para ali poderem estar tombam de cansaço às primeiras horas da manhã. São as escolas do real multiculturalismo, onde na mesma turma as mais variadas nacionalidades, línguas e dialectos se misturam, são as escolas da saúde pública que acompanham os alunos na sua medicação diária e acompanhamento médico, e de taxas de gravidez na adolescência elevadas.

São a escolas dos filhos enviados para outro continente, as escolas do choro, da angústia e da saudade, onde o carinho e atenção se esfumam no ecrã de qualquer telemóvel quando a videochamada termina. São as escolas da falta de abraços.

Dirão os tecnocratas que estas são as escolas dos tiros, espancamentos e esfaqueamentos, em que as paredes de betão e o isolamento servem até de defesa social, do clássico dos carros vandalizados e dos maus resultados. E os tecnocratas estão tão certos como os relógios parados - pelo duas vezes -, mas mais certeiro será declarar que 90% destes alunos são oriundos de famílias com carências das mais diversas variantes e de grupos sociais mais vulneráveis e em situação de marginalização.

Estas escolas são as escolas do verdadeiro privilégio social, as escolas que os ranking não tocam e empurram para o fundo, nem entendem porque se resume a cotações de resultados, e que o sistema faz de conta que não existem, são as escolas segregadas, que se escondem nos descampados das cidades, afastadas das comunidades. Esta é a realidade que todas as aulas de pedagogia e todos os documentos científicos dizem aos professores para não aceitar.

Mas o verdadeiro privilégio está na força de centenas de alunos que, apesar de objecto de políticas de ensino segregadoras, têm a ânsia de derrubar todas as barreiras que se lhes são colocadas, e fazem-no sem medo de um dia poderem ser mais. Está na força das dezenas de funcionários que, por pouco mais do que salário mínimo, são profissionais, familiares, médicos, psicólogos. Está, também, na força de dezenas de professores que não se conformam, que se reinventam, que fazem dos dialectos que viajam de mesa em mesa, na sala de aula, o verdadeiro êmbolo da multiculturalidade.

É a força destes profissionais que os faz correr atrás dos alunos que, de repente, deixam de aparecer – para se aperceberem que o avô ou avó que deles estava responsável faleceu, deixando-os completamente sozinhos e perdidos num país distante – para os trazer de volta ao que é a vida. E, se estes exemplos parecem poucos, bastava dizer que estes professores e auxiliares são os que não desistem nem abdicam de acreditar nestes jovens e crianças apesar de tudo o que acontece, o que, só por si, tem um tanto de futuro, como de passado heróico.

São estas as escolas fora dos pódios, as escolas gueto que, apesar de escondidas e tapadas pelo véu da vergonha que o sistema lhes coloca por cima, são as mais admiráveis de qualquer ranking.

O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

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