Para 007, nunca foi sempre a mesma cantiga

Um novo documentário na Amazon Prime Video desenha a história da música dos filmes Bond, mas não cumpre a sua promessa a cem por cento.

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Sean Connery como James Bond em Goldfinger DR

Nobody Does It Better - “ninguém o faz melhor [que ele]”, maravilhoso título de canção que resume, numa única frase as múltiplas promessas de cada novo filme de James Bond, o agente secreto 007 que tomou os ecrãs de cinema de assalto na década de 1960 e se tornou numa das mais longas franchises da paisagem cultural global.

Nobody Does It Better era o nome da canção, na voz sedutora de Carly Simon, no entanto; não o nome do filme, como tinha sido o caso de algumas das canções-chave que ilustravam os sumptuosos genéricos concebidos por Maurice Binder – Goldfinger ou Diamonds Are Forever na voz tonitruante de Shirley Bassey, Thunderball pelo galês Tom Jones, Live and Let Die a que Paul McCartney emprestara uma energia rock. Carly Simon ouvia-se no genérico de 007 O Agente Irresistível - no original The Spy Who Loved Me - e estávamos já em 1977, em plena era de Roger Moore no papel do agente criado por Ian Fleming.

Isto tudo para dizer que as canções de Bond, trailers sonoros com três minutos que criavam água na boca para o espectáculo que se iria seguir, se tornaram parte integrante da série. Indissociáveis de uma “máquina” de marketing que se foi afinando com os anos e permitiu a Bond atravessar décadas e actores, altos e baixos, e chegar aos 60 anos de idade, com Sem Tempo para Morrer a marcar um ponto final no “ciclo” iniciado em 1962 com Dr. No/Agente Secreto 007. (Já percebemos todos que a MGM não vai abrir mão da sua “propriedade intelectual”, mesmo que ninguém saiba o que aí vem.)

E também para dizer que as canções de Bond, e a música de Bond, mereciam melhor do que The Sound of 007, documentário de Mat Whitecross que estreou há um par de semanas na plataforma Amazon Prime Video. Whitecross, que foi montador de Michael Winterbottom, dirigiu telediscos para os Coldplay, e assinou séries de TV e documentários sobre música (Ian Dury, Oasis), comanda um objecto alinhado com o 60.º aniversário que exala um perfume forte de “encomenda promocional”.

Muito do filme concentra-se num “anúncio alargado” à banda-sonora de Sem Tempo para Morrer - que não é inteiramente desinteressante: desvendam-se os bastidores da criação da banda-sonora pelo compositor Hans Zimmer e da canção-tema de Billie Eilish, o modo como “isola” e “cita” elementos musicais de toda a série e como toda a construção da partitura obedece a um jogo de referências e ambientes milimetricamente pensado.

Mas porquê passar tanto tempo com Zimmer e Eilish, quando a última canção Bond de estarrecer foi Goldeneye (U2 cantado por Tina Turner) e a última de que todos se lembram foi Die Another Day de Madonna? E quando há tanta história para contar dos Bonds “clássicos” com Sean Connery, desde a nota sustida que quase sufocou Tom Jones em 1965 às alusões sexuais da letra de Diamonds Are Forever em 1971 (substituam “diamantes” por “órgãos genitais masculinos” e não digam que vão daqui…)?

Recorrendo a entrevistas de arquivo do lendário John Barry, compositor responsável por muitas das bandas-sonoras e das canções, ou conversas com os seus letristas Tim Rice ou Don Black, contam-se os acasos que levaram a algumas das mais aclamadas peças de música do século XX, cria-se uma espécie de “mapa sonoro” de todo um imaginário popular irrepetível hoje em dia.

E percebe-se como, na era “moderna” de Bond, as canções já não têm o mesmo poder de antes (com o devido respeito, alguém se lembra que Adele, Sam Smith, Alicia Keys e Jack White ou os Garbage interpretaram temas para a série?). Seria impossível a Mat Whitecross convencer-nos que as canções de Bond de hoje são “como as antigas”. E, contudo, The Sound of 007 parece estar sempre a tocar nessa tecla, sem que a sua convicção seja total.

Nobody does it better? Pode ser verdade do “agente irresistível”, mas há muito tempo que não é verdade da música. Mas quando era verdade, senhoras e senhores, ninguém fazia mesmo melhor – e é isso que interessa neste documentário.

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