Para as cidades, “isto não é só mais uma crise, é um ponto de viragem”

Aguardam-se medidas europeias de combate à crise energética, mas nas áreas urbanas já se sente o seu impacto e são precisas decisões imediatas. “Estamos demasiado dependentes dos combustíveis fósseis e estes são fornecidos por países autocráticos.”

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A pobreza energética afecta milhões de pessoas na UE Rui Gaudencio/PÚBLICO

Foi assim com a pandemia de covid-19, assim será com a crise energética: os mais fortes impactos vão sentir-se por quem vive nas cidades e terão de ser estas a assumir a dianteira da procura de soluções.

“Existe um cepticismo crescente sobre a forma como estamos a enfrentar a crise”, alertou no fim de Setembro, em Budapeste, a directora da Energy Cities. A esta organização europeia que congrega centenas de cidades chegam os relatos, propostas e anseios de muitos autarcas. “Temos tido muitas discussões com os mayors e eles têm a sensação de que isto não é só mais uma crise, é um ponto de viragem”, disse Claire Roumet.

Mas enquanto as instituições europeias e nacionais discutem sobre como cozinhar um plano que inclua aquecimento no Inverno e contas de energia suportáveis sem comprometer as metas de combate à crise climática, as cidades têm de tomar decisões imediatas.

Claire Roumet contou no Budapest Forum – um encontro que juntou académicos, políticos e activistas na capital húngara – que uma farmácia com 60 metros quadrados ao lado de sua casa, em Bruxelas, vai passar a pagar 600 euros de gás e electricidade. “Isto afecta todas as lojas, em todas as ruas”, alertou. “Ninguém está a pensar como é que reorganizamos os serviços públicos”, disse também, exemplificando: “Que serviços são mais prioritários? As piscinas, o sector cultural? Depois da pandemia, vamos estar sempre a prejudicar o sector cultural…?”

Além disso, acrescentou Zsolt Szegfalvi, director executivo da Habitat for Humanity da Hungria, “quando falamos de crise energética, temos de falar também das instituições que lidam com os mais vulneráveis, como os sem-abrigo”.

Esta semana, com um Conselho Europeu dedicado especificamente a este assunto e que arrancou com o reconhecimento de que as soluções ainda podem demorar, a Energy Cities e outras entidades subscreveram um apelo para que a União acelere as medidas que permitam contornar os problemas que se avizinham neste Inverno. Começam por escrever que “a actual crise de segurança energética é uma crise de aquecimento” e é desse ponto de vista que apresentam dez sugestões.

Adaptar a estratégia europeia de aquecimento e arrefecimento às políticas ambientais (para a tornar mais sustentável), impulsionar a reabilitação de edifícios, obrigar todas as autoridades locais a ter planos de aquecimento, criar novos mecanismos financeiros para a transição energética e cortar nos apoios aos combustíveis fósseis estão entre as propostas.

“Na Comissão Europeia estamos a trabalhar todos os dias para conseguir que os preços de electricidade não estejam relacionados com os do gás”, revelou no encontro Eero Ailio, assessor para a transição energética na direcção-geral europeia da Energia. “Mas isso vai demorar, só no próximo ano”, reconheceu, somando outra constatação: “Estamos demasiado dependentes dos combustíveis fósseis e estes são fornecidos por países autocráticos.”

A crise pode ser uma boa oportunidade, opinou a eurodeputada Kim van Sparrentak, dos Verdes. “A maioria dos Estados-membros estava a caminhar numa direcção em que não se punham em causa os nossos comportamentos, incluindo os nossos consumos energéticos”, acusou. “Devido à solidariedade para com a Ucrânia e à solidariedade para com quem tem custos agravados, estamos também a pensar em ter solidariedade para com as gerações futuras.”

E podem dar-se passos para tal a nível local, defendeu Sparrentak. A cidade em que vive, Roterdão, começou a distribuir “caixas de energia” aos agregados com menores rendimentos. Nas caixas havia lâmpadas LED, uma extensão eléctrica, fitas isoladoras e uma cabeça de chuveiro que permite poupar água.

São ajudas, à espera que os problemas de fundo comecem a ser resolvidos. Zsolt Szegfalvi revelou, por exemplo, que na Hungria existe uma elevada percentagem de casas que são energeticamente pouco eficientes. Aqui entra outra dificuldade: o dinheiro. Segundo Masha Smirnova, da organização Eurocities, que fez sondagens a autarcas, “os governos nacionais desenharam os seus Planos de Recuperação e Resiliência sem falar suficientemente com as autoridades locais” e a Hungria é precisamente um dos países que recebeu nota “catastrófica”.

“Ninguém deve ter de escolher entre comer e aquecer-se”, disse ainda Kim van Sparrentak. A frase é mais orelhuda em inglês, devido à homofonia entre “eating” e “heating”, e é um programa político. Para a eleita holandesa, as mesmas regras que vigoraram durante a pandemia devem aplicar-se agora. “Nenhum cidadão devia perder a sua casa, nenhum cidadão devia ter a electricidade e o gás cortado por falta de pagamento”, argumentou van Sparrentak, defendendo a necessidade de “ter moratórias para os despejos e cortes de energia”.

O PÚBLICO viajou a Budapeste a convite do instituto Political Capital, co-organizador do Budapest Forum

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