Manuel Loff: Os activistas “põem em causa a ordem social, de outra forma não têm impacto”

Há sempre uma tensão entre as acções levadas a cabo pelos movimentos sociais e a ordem social imposta pelo Estado e classes dominantes. A actual panóplia de actos dos manifestantes pelo clima enquadra-se numa tradição de 400 anos, defende Manuel Loff.

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O historiador Manuel Loff Manuel Roberto

Duas activistas da associação Just Stop Oil lançaram sopa de tomate num quadro de Van Gogh, na National Gallery de Londres. O vídeo causou uma onda de choque. Nas ruas de Nova Iorque, um grupo de jovens tem saído à noite para esvaziar pneus de automóveis SUV. O activismo pelo clima tem proliferado nas últimas semanas com bloqueio de estradas e edifícios. Estudantes e investigadores têm estado envolvidos. Nesta entrevista, Manuel Loff, historiador do Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Universidade do Porto, que estuda os movimentos sociais, contextualiza a nível histórico o que está a ocorrer.

Considera que há violência nas actuais acções pelo clima?
Essa é uma discussão do campo da moral. Na análise histórica preocupa-nos menos a classificação do ponto de vista legal e penal de como se comportam os movimentos sociais. Preocupa-nos mais perceber qual é a sua capacidade de mobilização e, dentro do repertório de acções colectivas, quais são as escolhidas. Quem habitualmente se foca na questão da violência contra a ordem social, contra a propriedade, é o Estado e as forças de segurança. Desde o século XVII. E é a definição que o Estado dá, nos seus códigos penais, na forma repressiva que usa contra os movimentos sociais, que os condiciona na escolha do tipo de acções.

O que sabemos desde há 400 anos sobre os movimentos sociais é que acontecem no espaço público, têm uma dimensão colectiva e põem em causa a ordem social, de outra forma não têm impacto. É expectável que movimentos do campo da luta ambiental usem aquilo que faz parte há muito tempo do repertório das acções colectivas. Na discussão do pneu ou do quadro podem inovar, mas o que fazem do ponto de vista do boicote, da interrupção, da criação de obstáculos ao normal funcionamento da economia e das relações sociais é aquilo que os movimentos sociais fazem há muito tempo.

Pode dar exemplos?
Na última grande crise económica do capitalismo, de 2008 a 2015, o Occupy Wall Street e o 15-M espanhol, que incluiu o cerco ao Congresso de Espanha – foi um cerco simbólico –, foram interpretados pelos Estados como ameaças gravíssimas à ordem constitucional e à soberania nacional. No caso de Wall Street, em Nova Iorque, colocaram em causa o funcionamento do sistema financeiro. No caso espanhol, puseram em causa aquilo que o Estado descreve como o normal funcionamento das instituições. O cerco espanhol assemelha-se muito ao da Assembleia Constituinte de 1975, em Portugal, de manifestantes que vinham do sector da construção e que tinham determinada agenda de reivindicações.

Na discussão do campo ambiental, que já vem dos anos de 1970, temos situações em França, na Alemanha e no Japão, temos questões em torno da construção de aeroportos, com manifestantes que desafiam permanentemente as autoridades ocupando os próprios lugares onde uma obra pública tem de ser feita. Os manifestantes sabem que estão a incumprir a lei. Contudo, a sua acção está sempre num campo de fronteira, de tensão. Normalmente, o Estado e as classes dominantes classificam este tipo de acções no campo do crime, da acção ilegal que deve ser penalizada. Ao mesmo tempo, em qualquer sociedade liberal regida por um estado de direito constitucional, estas acções enquadram-se no direito de manifestação. E o direito de manifestação no espaço público é um direito central de todas as democracias. Os movimentos sociais usam-no sistematicamente.

As acções mais extremas ajudam ao objectivo dos movimentos?
Do ponto de vista da sua divulgação e do seu impacto mediático, e no conjunto do conhecimento que as sociedades têm daquilo que se está a passar, têm um grande impacto. Mas têm um potencial auto-lesivo. Sempre que se usa a violência contra o Estado, contra os opressores, do ponto de vista moral o conjunto da sociedade vai-se solidarizar, vai mostrar empatia com a vítima da violência e vai descrever o oprimido que usou da violência como um criminoso.

Como vê a actual onda de activismo ambiental?
A sociologia e a ciência política têm associado a emergência de novos grupos sociais desde as décadas de 1960 e 1970 a uma nova geração que partilha de valores pós-materialistas. A generalidade dos países ocidentais desenvolvidos promoveu um nível de bem-estar nas gerações nascidas depois de 1945 que, 20, 30 e tal anos depois, superaram a fase da reivindicação de valores centrados na sobrevivência económica, no mínimo de bem-estar social, para valores de natureza pós-materialistas: com uma percepção existencialista da realidade humana e ambiental muito crítica do comportamento das comunidades humanas industriais e pós-industriais.

Reconheço que se pode designar como pós-materialistas muitos destes valores, mas a sua persecução [actual] é feita num momento em que a desigualdade social à escala planetária e de todo o ocidente tem vindo a crescer. Por isso, este activismo vem acompanhado nesses mesmos jovens de um grau de precarização das suas relações de trabalho, adiamento de construção do seu próprio futuro individual e à escala colectiva, e de uma rotura, sistemática, das suas expectativas mais positivas. São gerações que podem dizer que, pela primeira vez, vão potencialmente viver pior do que as gerações dos seus pais e dos seus avós.

Há jovens, estudantes, cientistas a realizarem acções. São camadas novas de activistas?
O mundo da universidade, da investigação e o universo estudantil, desde as vésperas da I Guerra Mundial, são uma das componentes mais visíveis dos movimentos sociais. Uma sociedade centrada na crença, agora muito posta em causa, do progresso e da continuidade do progresso e também na crença muito disputada da bondade e da necessidade da ciência na interpretação, na reconstrução do mundo, na sua “salvação”, evidentemente dá um grande peso ao activismo de quem trabalha no campo de investigação, de quem estuda nas universidades.

Não acho que o activismo nestes sectores seja uma novidade, a agenda é que é diferente. Coloca problemas para os quais vejo uma natureza existencial. É uma discussão não só do futuro da humanidade, mas do futuro do planeta, da vida em geral. Não acho é que esta discussão seja autónoma da discussão do debate e do activismo sobre as próprias condições materiais de vida destes activistas.

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Activistas bloqueiam auto-estrada, em Roma, a 17 de Outubro Yara Nardi/Reuters

Houve uma onda de choque perante o acto das duas activistas lançarem sopa de tomate a um quadro de Van Gogh. Em Londres, há queixas aos bloqueios diários de ruas feitos pelos activistas da Just Stop Oil. Como lê estas reacções?
É muito expectável. As sociedades dividem-se entre aqueles que valorizam aquilo que são direitos e liberdades fundamentais, e entendem que eles são absolutamente indiscutíveis. Ou, pelo contrário, sabendo que o exercício de vários desses direitos pode pôr em causa a “normalidade”, a fluidez da vida quotidiana, aqueles que dizem “a mim não me interessa o que pretendem os trabalhadores disto ou os activistas daquilo, interessa-me fazer a minha vida”. Normalmente, estamos a falar dos sectores da sociedade menos politizados, cujos valores políticos, morais, e cuja realidade material da vida os leva a deslegitimar qualquer movimento social e a retirar qualquer utilidade à acção política.

Desde o final da década de 1970, continuamos a verificar uma regressão dos movimentos sociais. Isso manifesta-se numa sociedade em que o neoliberalismo e o neoconservadorismo como ideologias, que começaram a ser dominantes no Ocidente a partir do início da década de 1980, se estruturam sobre a tese de que os movimentos sociais são inúteis e contraprodutivos. Quando se diz “eu até sou capaz de estar de acordo que é necessário preservar o meio ambiente, tentar reverter a mudança climática, mas não me podem pôr em causa o direito a usar o carro, aquecer a casa a 27 graus, etc.”, é exactamente o mesmo tipo de atitude liberal e conservadora. Liberal é: “Eu posso fazer o que quiser.” Conservadora é a suspeição generalizada sobre todo o tipo de acção colectiva que não seja institucional e considerada legítima. Se perturbar, uma boa parte da sociedade está perfeitamente disponível para pôr em causa o direito à greve, o direito à manifestação.

No contexto das acções climáticas, será que as pessoas que criticam as acções dos activistas compreendem a ligação entre o que os activistas defendem e o que está a viver parte da população do Paquistão, cuja vida foi, de facto, arrasada pelas cheias?
Claro que não. Não está inscrito na consciência social e cívica de uma grande parte da sociedade os perigos claríssimos das alterações climáticas. Uma das pequenas manifestações disso são os movimentos negacionistas. O carácter predatório do modelo de produção capitalista é totalmente coerente com o cepticismo, a indiferença e até o negacionismo, no campo da mudança climática. A maioria dos nossos concidadãos, a leitura que faz da mudança climática não altera os seus comportamentos sociais e de consumo.

A 22 de Abril de 2022, no dia da Terra, Wynn Bruce, de 50 anos, imolou-se à frente do Supremo Tribunal em Washington, nos Estados Unidos, num acto pelo clima, e morreu. Como encarar um acto destes?
É uma forma de activismo absolutamente extrema. É como se a verificação da inutilidade do que até agora os movimentos sociais fizeram tivesse de chegar a um ponto extremo: “Prefiro auto-lesionar-me de tal forma que provavelmente irei morrer.” Julgando que se está a criar um exemplo e a produzir um acontecimento que obriga à consciencialização. Tenho muitas dúvidas de que essa consciencialização se produza. Não adiro de forma alguma a estas formas de protesto.

Também há uma dimensão da desistência: “Não quero mais participar.” Este tipo de formas de acção raramente são colectivamente enquadradas, são radicalmente individuais – não é um repertório de acção colectiva. Mesmo que o acto desse desaparecimento seja sob a forma de [eremetismo] “eu não quero mais ver ninguém, vou viver isolado no meio da natureza”, tem essa dimensão da desistência. Sou totalmente céptico sobre a sua eficácia. Através dele não é fácil agregar movimentos sociais.

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