Energias renováveis evitam gastos de 99 mil milhões de euros na compra de gás

Produção recorde de electricidade a partir do vento e do sol evitou que a União Europeia importasse 70 mil milhões de metros cúbicos de gás russo desde o fim de Fevereiro de 2022, quando a Ucrânia foi invadida, revela relatório.

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Parque eólico em Havrincourt, na França PASCAL ROSSIGNOL/Reuters

Uma produção recorde de electricidade a partir de energia eólica e solar permitiu que a União Europeia (UE) evitasse, desde Março de 2022, a importação de gás russo num valor estimado de 99 mil milhões de euros. Esta é uma das conclusões de um relatório, intitulado Mais Renováveis, Menos Inflação, divulgado esta terça-feira pelos think tanks independentes Ember e E3G.

Os autores do estudo sublinham que esta deve ser a atitude europeia daqui para a frente: acelerar a produção de energias renováveis e, simultaneamente, travar a importação de combustíveis fósseis caros que contribuem para o aumento da inflação. Assim, temos um duplo benefício: ambiental e económico.

“Acho que esta é a principal mensagem para os decisores políticos: a direcção da política energética na última década (ou nas últimas) tem sido muito lenta na adopção de energia limpa e doméstica [produzida localmente]. As decisões foram tomadas na ingénua suposição de que a Rússia (e outros fornecedores de combustíveis fósseis) permaneceriam parceiros comerciais estáveis ​​e confiáveis, o que tornou a crise energética de hoje ainda pior”, afirma ao PÚBLICO Chris Rosslowe, co-autor do estudo e analista de dados climáticos e energéticos da Ember.

Chris Rosslowe acredita que só saberemos realmente se a UE aprendeu a lição quando virmos compromissos robustos, com prazos ambiciosos, para a produção de energia limpa em larga escala. Para o analista, os primeiros passos consistem na definição de “uma meta de pelo menos 45% de energia renovável” até 2030 e num “amplo apoio” dos países-membros ao pacote europeu REPowerEU.

A iniciativa REPowerEU prevê uma actualização dos objectivos e prazos anteriormente definidos para a UE alcançar a chamada neutralidade carbónica. Esta estratégia de Bruxelas também implica um reforço de cerca de 300 mil milhões de euros para apoiar os investimentos e as reformas imprescindíveis para tornar os países europeus menos dependentes do gás russo.

“A proposta REPowerEU estabelece novas metas mais altas para energia renovável e eficiência energética. Apoiar essas metas impulsionará o investimento acelerado antes dos invernos futuros. É a opção sensata para a segurança energética da Europa, para os orçamentos governamentais sobrecarregados e para as facturas dos consumidores”, lê-se no documento elaborado por Rosslowe juntamente com Pieter de Pous, Artur Patuleia e Sarah Brown.

Sol e vento geram 345 TWh

O estudo mostra que a capacidade eólica e solar actualmente instalada evitou que a União Europeia importasse 70 mil milhões de metros cúbicos de gás desde Fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia. Entre 1 de Março e 30 de Setembro – o intervalo considerado pelos autores –, a energia eólica e solar atingiu uma quota de 24% da electricidade produzida na UE.

Ao todo, a energia eólica (192 Terawatt-hora, TWh) e solar (153 TWh) geraram 345 TWh de electricidade em toda a UE entre Março e Setembro deste ano. Trata-se de um aumento anual recorde de 13% (mais 39 TWh). Portugal também registou um recorde nesse período – com 37,5% de electricidade eólica e solar (8,5 TWh).

“Sem energia eólica e solar, esta crise energética (que é sobretudo uma crise de abastecimento de gás) teria sido ainda pior, porque a UE precisaria [de comprar ainda] mais gás para gerar electricidade para manter as luzes acesas. Isso teria resultado em preços mais altos do gás hoje”, afirma Rosslowe, numa resposta por e-mail.

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Analistas acreditam que, sem a produção recorde electricidade a partir de renováveis, a União Europeia estaria numa situação ainda mais vulnerável NUNO VEIGA

O aumento da energia eólica e solar ajudou a mitigar os impactos provocados ​​pela seca hidrológica (que, segundo o estudo, causou uma redução de 21% na geração hidroeléctrica) e pela indisponibilidade de capacidade nuclear (redução de 19%).

“Os ministros da Energia na União Europeia têm agora uma oportunidade de enfatizar as vantagens da energia limpa. Além dos benefícios climáticos, acelerar a adopção de energias renováveis baratas reduz também a exposição da Europa à subida dos preços dos combustíveis fósseis”, refere o artigo.

O relatório da Ember e da E3G sublinha que o gás foi visto durante muito tempo como um combustível capaz de fazer a ponte entre as energias fósseis e as renováveis. Para os autores, esta ideia de que o gás poderia ser uma “ponte” foi um erro que, em parte, nos conduziu à actual crise energética.

“Apostar no gás como combustível de ponte e travar a expansão das capacidades renováveis ​​são as principais causas da crise energética na Europa. A decisão de prosseguir com mais uma estratégia de diversificação e desenvolver novas infra-estruturas de gás […] corre o risco de replicar erros passados ​​e não vai trazer alívio à crise actual”, alertam os autores.

Indagado sobre o risco de uma possível recessão mundial se tornar um obstáculo à expansão das renováveis, Chris Rosslowe mostra-se confiante. “A energia limpa permanecerá competitiva, como vimos durante o recente período de inflação. O maior risco é o investimento. É por isso que é mais importante do que nunca que os líderes europeus (e não apenas da UE) enviem uma mensagem clara de que a Europa está a dobrar [a produção de] energia limpa (predominantemente renovável) como uma forma de sair da crise”, diz ao PÚBLICO o analista da Ember.

E a energia nuclear?

O relatório foca-se apenas na produção de electricidade a partir do sol e do vento, não abordando um tema emergente na discussão europeia sobre a crise do gás – a questão da energia nuclear. Em Portugal, por exemplo, acaba de nascer a RePlanet, uma nova associação contra a “demonização” desta alternativa aos combustíveis fósseis.

Questionado sobre o lugar que a energia nuclear pode ocupar no puzzle energético europeu, Rosslowe mostra-se hesitante em aplaudir esta energia como uma via que não deve ser descartada. O analista sublinha que, enquanto as energias eólica e solar batem orgulhosamente recordes, “há uma crise na geração nuclear francesa (país que domina o fornecimento de energia nuclear da UE)”.

“Esta crise [francesa] é uma combinação de condições de seca de Verão e manutenção não programada, mas necessária. O que isso mostra é que a energia nuclear tem a reputação de ser uma fonte de energia muito confiável, o que talvez seja imerecido, especialmente no contexto de um clima europeu em rápida mudança com extremos climáticos crescentes”, analisa Rosslowe.

Em Setembro, a Ember divulgou um estudo centrado apenas na energia solar. O documento mostrava que, durante o Verão de 2022, a União Europeia foi capaz de gerar 12% de toda a sua electricidade a partir de fontes solares. Esta produção recorde contribuiu para que evitássemos importações de gás num valor estimado de 29 mil milhões de euros. Este novo documento do think tank em parceria com a E3G vem mostrar, combinando fontes solares e eólicas, e considerando uma janela temporal mais alargada, uma poupança mais de três vezes maior.

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