Corta-se o cabelo com as iranianas porque “a fúria é mais forte que o poder do opressor”

O gesto remete para o folclore persa, mas noutras culturas e tempos os cabelos também foram (e são) usados por mulheres como uma forma de protesto ou de afirmação social. Há, porém, quem acuse os actos de solidariedade como demasiado performativos.

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Um manifestante segura cabelo cortado durante um protesto após a morte de Mahsa Amini, perto do consulado iraniano em Istambul, Turquia, a 4 de Outubro Reuters/MURAD SEZER

Largas mechas, apenas umas pontas, um bocado ao calhas ou com muito jeito. Mais contidas ou dramáticas, personalidades de todo o mundo têm vindo a exibir-se nas redes sociais a cortarem os seus cabelos em solidariedade com a luta das mulheres iranianas, cujos protestos, após a morte de uma jovem detida pela polícia da moralidade, já causaram mais de 150 mortos, de acordo com dados não oficiais.

Primeiro, foram as francesas. Mais de 50: Isabelle Huppert, Juliette Binoche, Marion Cotillard... Antes, a eurodeputada sueca Abir al-Sahlani tinha cortado os cabelos em plena sessão do Parlamento Europeu. Seguiram-se as espanholas: mais de sete dezenas de personalidades, entre as quais as actrizes Alba Flores, Carmen Maura, Maribel Verdú, Paz Veja e Penélope Cruz.

A última optou por apenas cortar as pontas, mais ou menos o mesmo que a portuguesa Catarina Furtado, o que valeu uma chuva de críticas à embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População​​, que acabou por apagar a publicação da sua conta de Instagram.

As críticas, no entanto, não foram apenas dirigidas à apresentadora do The Voice Portugal​. Pelas redes, há quem acuse o gesto, tanto das francesas como das espanholas, de ser demasiado performativo e quem lembre que França é “também o lugar onde os corpos das mulheres muçulmanas são frequentemente tema do debate público e das leis anti-escolha”.

“Quantas destas mulheres saíram em apoio do direito das mulheres muçulmanas francesas a escolherem usar o niqab ou o hijab?”, questionou no Twitter a escritora bósnia Arnesa Buljušmić-Kustura, lembrando a lei que proíbe o uso de símbolos religiosos, como o véu muçulmano, em edifícios governamentais, incluindo escolas e universidades, e vedando os funcionários públicos, como professores ou agentes da polícia, de usarem esses adereços durante o período de trabalho. No Irão, os protestos não são contra o uso do hijab, mas pela liberdade de poder escolher usá-lo ou não.

Foi precisamente a pensar na “luta pela liberdade” que, na Índia, Geeta Mohan, pivô do India Today, cortou o cabelo durante o programa de sábado e declarou em directo que a morte de Amini “deu início a uma revolução”. E apelou: “As mulheres sofrem até no mundo desenvolvido, no Oriente, no Extremo Oriente. A todas estas mulheres digo: ‘Ergam-se agora’. É agora ou nunca.”

Cabelos, arma de protesto

Além de uma componente estética, os cabelos têm, ainda hoje, um forte simbolismo, representando força física (no Livro dos Juízes do Antigo Testamento, Sansão só é capturado pelos filisteus depois de o seu cabelo ser cortado durante o sono por Dalila), mas por mais do que uma vez, ao longo da história, a tesoura foi usada como uma ferramenta de protesto.

Quando, em 2014, a designer britânica Vivienne Westwood apareceu de cabeça rapada, um porta-voz da sua marca fez saber que a opção fora tomada para “acordar [o mundo] para as alterações climáticas”. Quase cem anos antes, muitas mulheres enrolavam ou cortavam os seus cabelos, ao mesmo tempo que usavam roupas que não lhes vincavam as formas, num hino à emancipação feminina que teve na Primeira Guerra, durante a qual muitas mulheres assumiram os lugares dos homens deslocalizados para a frente da batalha, uma espécie de gatilho.

No Islão, o cabelo das mulheres é sinónimo de atracção sexual. Por esse motivo, apenas pode ser visto por mahrams, ou seja, por homens com quem lhes é impedido o casamento, como o pai ou o irmão. Perante os não mahrams é exigido que tapem os cabelos. Além disso, o corte do cabelo só pode ser realizado se o objectivo for “racional” ou se o fizer “com permissão” do marido ou do homem por si responsável.

No entanto, o gesto é usado pelas mulheres persas como um protesto que se inspira no folclore. No épico Shahnameh, o poeta iraniano Ferdusi (940-1020) conta a história de uma princesa que corta os cabelos para protestar contra o homicídio do marido. Os cabelos cortam-se “quando a fúria é mais forte que o poder do opressor”, escreveu no Twitter Shara Atashi, uma escritora e tradutora iraniana a residir no País de Gales.

Atashi, que saiu do Irão com a mãe, em 1978, durante a revolução que levou os ayatollahs ao poder, explicou à CNN, que o poema de Ferdusi ajudou, nos últimos mil anos, a moldar identidades de iranianos, afegãos e tajiques. E o acto de cortar o cabelo também aparece “na poesia de Hafez (séc. XIV) e Khaqani (séc. XII), sempre sobre luto e protestos contra a injustiça”.

Os vídeos de mulheres de todo o mundo a cortarem os seus cabelos, que se tornaram virais, “são uma forma de dar um impacte internacional à sua luta”, considerou a escritora, ainda que ressalve que “não podemos reduzir a luta das mulheres iranianas pelos seus direitos — que remonta à segunda metade do século XIX — ao gesto de lhes cortar o cabelo”.

Os protestos contra a imposição do hijab iniciaram-se, a 16 de Setembro, depois de uma jovem, de origem curda, ter morrido na sequência de ter sido detida pela chamada polícia da moralidade. Mahsa Amini, de 22 anos, foi interpelada na rua, acusada de usar o véu de forma inadequada e levada. Horas depois, foi transportada para o hospital em coma, tendo morrido ao fim de três dias.

As autoridades relataram antecedentes clínicos; a família garantiu que a jovem era saudável e testemunhos citados pelo Guardian contaram que Mahsa Amini foi espancada durante a detenção. O relatório médico acabou por esclarecer que a jovem sofreu lesões graves na cabeça e uma fractura no crânio.

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