Parque Nacional da Peneda-Gerês: um livro sobre a biodiversidade perdida e a que temos de proteger

Livro de Miguel Dantas da Gama não é só uma detalhada caracterização da fauna e flora do Parque Nacional da Peneda-Gerês. É também uma obra que procura sensibilizar para a real conservação desta área protegida. O lançamento é esta terça-feira (11 de Outubro), pelas 17h, no Centro de Educação Ambiental do Vidoeiro, nas Caldas do Gerês.

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Cabra-montesa, que no final do século XX regressou ao Gerês, após uma longuíssima ausência Miguel Dantas da Gama

Abrimos o livro e a primeiríssima coisa que vemos é um desenho de um lobo-ibérico, que nos interpela. “Não quero ser, neste território, o último superpredador selvagem, o sobrevivente. Por isso, reclamo o regresso daqueles outros que [vocês] exterminaram”, diz-nos.

O território a que se refere é o Gerês e o livro em questão chama-se Parque Nacional da Peneda-Gerês, Fronteira Selvagem. “A fronteira selvagem da Peneda-Gerês há muito que se dissipou. A definição destes dois mundos é, hoje em dia, impossível no território. Sinais do homem e dos efeitos da sua conduta estão sempre presentes. Do lado bravio, resta a imaginação que acompanha quem se aventura pelos seus redutos mais inacessíveis”, reflecte, mal o lobo-ibérico desenhado termina a sua intervenção, o ambientalista Miguel Dantas da Gama, autor de mais uma obra em que escreve sobre o Parque Nacional da Peneda-Gerês, área protegida que fez 51 anos em Maio.

Depois de títulos sobre, respectivamente, as árvores (2011) e águias-reais (2013) do parque, surge um livro “dedicado à globalidade do [seu] património natural”. Ao longo de quase 400 páginas, Miguel Dantas da Gama lembra o que esteve na origem da criação desta área protegida, caracteriza a sua fauna e flora, descreve os seus habitats e dedica algumas linhas a espécies que, tendo já percorrido o território num passado que bate os 51 aniversários do Parque Nacional da Peneda-Gerês, hoje preferem outras regiões.

Sobretudo devido a séculos de uma danosa actividade humana. Os fogos “insistentes”, o sobrepastoreio, a prática da caça, “a pressão de um turismo que prospera com a existência de acessos em zonas sensíveis para a preservação dos habitats e a sobrevivência das espécies que deles dependem”... Estes e outros factores são elencados pelo autor de Fronteira Selvagem como responsáveis por uma “degradação ambiental” que, na sua óptica, continua por abater na totalidade, apesar de o parque ser uma área protegida há pouco mais de meio século.

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Incêndio na zona do Parque Nacional da Peneda-Gerês, ocorrido em Julho de 2022, no auge de uma onda de calor fortíssima Tiago Lopes

Esta degradação preocupa Miguel Dantas da Gama, que, antes de fazer a sua detalhada caracterização do parque e da sua biodiversidade, alerta que algumas das espécies a que faz referência no livro não dispõem de “territórios alternativos” em Portugal. “Raridades botânicas e faunísticas, e os espaços vitais onde ocorrem, estão sob a ameaça constante dos factores de destruição apontados.”

Naquela que é a “nota prévia” da obra, Miguel Dantas da Gama diz que “recriar” a “fronteira selvagem” da Peneda-Gerês é de uma importância imensa e deveria constituir um objectivo prioritário. “Impõe-se fomentar o regresso de uma natureza não dependente do homem, aderindo ao movimento de rewilding que se vai praticando em territórios progressivamente abandonados um pouco por toda a Europa”, defende. O “movimento de rewilding” a que se refere tem representação portuguesa e engloba acções de conservação que visam permitir que a natureza volte ao seu “estado natural”, isto é, não cultivado, não transformado pela mão humana.

“A recuperação do coberto vegetal é absolutamente fundamental neste parque”, diz o autor ao PÚBLICO, reforçando a ideia que apresenta no livro. “Se conseguirmos isso, o resto vem por arrasto. Isto é: se recuperarmos os habitats, as espécies acabarão por regressar.”

O saudoso urso-pardo

Uma das principais espécies desaparecidas é o urso-pardo. Segundo o livro Urso-pardo em Portugal — Crónica de uma Extinção (2017), o último urso-pardo que viveu em Portugal foi morto em 1843, justamente no Gerês. Ficou a restar, na Península Ibérica, uma reduzida população na Cordilheira Cantábrica (Espanha). Miguel Dantas da Gama diz que essa população “esteve ameaçadíssima”, mas, conforme o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) explicava ao PÚBLICO em 2017, ela tem vindo, em anos recentes, a crescer (há cinco anos, o ICNF dizia haver “cerca de 300 ursos” na Cordilheira Cantábrica).

“Nas Astúrias, as pessoas verificaram que o urso-pardo era uma mais-valia que podia ajudar à dinamização da economia local. Hoje em dia, há lá muito turismo associado ao urso”, comenta o autor de Fronteira Selvagem, elogiando o facto de várias associações ambientalistas terem ajudado as autoridades a elaborar medidas para preservar e robustecer a população do mamífero.

“Aqui, no parque [da Peneda-Gerês], falta espaço para haver uma população residente, mas gostava que o Gerês fosse ou voltasse a ser uma zona onde os ursos pudessem fazer incursões infrequentes”, acrescenta, salientando que, para isso acontecer, teria de se investir num “trabalho grande de recuperação de habitat e plantação de árvores de fruto” (o urso-pardo é um animal omnívoro).

A involuntária ajuda de Espanha

Não é só quando fala deste mamífero que o ambientalista aplaude os esforços de conservação encetados pelo país vizinho. Miguel Dantas da Gama lembra que foi graças às autoridades da comunidade autónoma da Galiza que, mesmo antes da viragem do milénio, a cabra-montesa regressou ao Gerês, após uma longa ausência.

Hoje em dia, “uma pessoa que se embrenhe na serra vê cabras-montesas regularmente”, mas esta não foi sempre a realidade. A caça exerceu muita pressão sobre o animal, que passou quase todo o século XX longe de solo português. É aqui que entra a involuntária ajuda espanhola.

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Cabra-montesa no Gerês Miguel Dantas da Gama

Em 1992, a Junta da Galiza trouxe, de uma reserva em Salamanca, quatro machos e oito fêmeas da espécie para o Parque Natural do Invernadeiro (Espanha), para iniciar, no seu próprio território, um processo de reintrodução. Em cinco anos, o número de indivíduos passou de 12 para 70, 18 dos quais foram depois transferidos para o parque natural da Baixa Limia — ao qual a Peneda-Gerês se une na fronteira entre Portugal e a Galiza.

Alguns dos elementos desse grupo acabaram por passar para o lado de cá. Cerca de duas décadas depois, temos uma serra do Gerês novamente com uma população de cabras-montesas na paisagem. Miguel Dantas da Gama foi, em 1999, o primeiro a confirmar o regresso da espécie.

O ambientalista afirma que os espanhóis também ajudaram ao regresso de espécies como o abutre-preto, o grifo e o quebra-ossos. Contribuíram, ainda, para um “reforço populacional” da águia-real.

Ainda sobre o país vizinho (e o mundo das aves), o autor refere que Espanha continua a ter populações de uma espécie “fascinante” que o Gerês já “perdeu”. Trata-se do pica-pau-preto, que “necessita de florestas antigas, com árvores mortas, de onde extrai as larvas” que gosta de comer. “O Gerês, com os fogos, tornou-se inabitável para ele”, diz.

“As pessoas não notam a degradação”

“O Gerês precisava de duas, três, quatro décadas sem fogos”, afirma o autor, quando instado a falar daquilo que, na sua óptica, tem de acontecer para a biodiversidade da área protegida ser verdadeiramente conservada. “O bosque tinha de voltar a crescer para abafar os matos.”

Autor tanto dos textos como das muitas fotografias, Miguel Dantas da Gama ​diz que escreveu Fronteira Selvagem porque “não existia um livro que, num formato apelativo, compilasse o conteúdo mais importante sobre os tesouros ecológicos do parque”. E porque sente que as pessoas, quando visitam o Gerês, não se apercebem claramente de que, neste momento, a biodiversidade da área protegida atravessa um momento delicado. “As pessoas não notam a degradação. Acham que é normal as linhas de água estarem carecas e as zonas altas da serra quase não terem vegetação. É preciso que se saiba bem o que está em causa.”

Parque Nacional da Peneda-Gerês, Fronteira Selvagem é lançado esta terça-feira (11 de Outubro), dia em que, pelas 17h, será apresentado no Centro de Educação Ambiental do Vidoeiro (nas Caldas do Gerês), num ​evento conduzido por Abel Coentrão, ex-jornalista do PÚBLICO.​ O livro, que custa 45 euros, chegará brevemente às lojas Fnac do país. Para já, pode ser encomendado via e-mail (canhoesdepedra@gmail.com).

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