Falta de precipitação é “um problema que veio para ficar”

Desde 2000 que Portugal tem registado “valores de precipitação francamente inferiores à média histórica – e isso é resultado das alterações climáticas”, disse-se numa conferência dedicada à água, em Lisboa. É preciso encontrar soluções para o problema da escassez de água, sem nunca esquecer que não existe uma “solução milagrosa”.

Foto
Seca na barragem do Azibo, em Macedo de Cavaleiros Nelson Garrido

Apesar de segunda-feira ter sido um dia chuvoso, foi dia de se falar sobre escassez de água e seca – e “a chuva não tirou acuidade ao tema”, comentou em tom de brincadeira o presidente da organização Oikos, João José Fernandes, na Fundação Oriente, em Lisboa. E o tema é sério: os dados mostram que os níveis de precipitação têm vindo a diminuir ao longo dos anos e isso “não são boas notícias”, afirmou o investigador e especialista em alterações climáticas, Filipe Duarte Santos, um dos convidados principais da conferência “Água – As principais vulnerabilidades de Portugal face às alterações climáticas”, que decorreu na tarde desta segunda-feira. “É um problema que veio para ficar”, rematou.

Todo o país tem registado uma redução da precipitação e o cenário também se vai “agravando na Europa”. A única solução é remediar o problema das alterações climáticas, disse Filipe Duarte Santos, e isso passa por fazer projecções para se saber como vai ser o clima do futuro e desenhar estratégias de adaptação. É “essencial” que não haja desperdícios, em particular na agricultura, realçou. E reconheceu que o sistema para a mudança sofre de “lentidão” e que é preciso olhar para outras alternativas, como a reutilização de águas residuais e a dessalinização. “Espanha tem grande reutilização das águas urbanas, Portugal tem pouco”, comparou, ressalvando que Portugal tem uma percentagem elevada de tratamento de águas residuais.

Apesar de haver cerca de 400 milhões de euros previstos no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) destinados a melhorar a escassez hídrica (dos quais 45 milhões destinados à construção de uma central dessalinizadora no Algarve para transformar a água do mar em água potável), Filipe Duarte Santos deixou uma crítica à falta de atenção que é dada aos recursos hídricos: “É surpreendente que a água não tenha tido mais impacto no PRR.”

Além disso, a escassez de água e os reduzidos níveis de precipitação “são tendências que não se verificam só em Portugal”. As secas, explicou Filipe Duarte Santos, são um dos fenómenos que mais causam perdas económicas – e são ainda mais “significativas em termos de prejuízo humano”, sobretudo em países mais pobres. “As secas são muito agressivas sobretudo em países com economias que dependem muito da agricultura”, disse o também presidente do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNADS). Os climas estão a mudar e muitos ficam mais secos. “É como uma doença” que se propaga, comparou.

Todas essas mudanças têm impactos palpáveis na vida das pessoas. A jurista Catarina Albuquerque, presidente executiva da parceria global Sanitation and Water for All (Saneamento e Água para Todos) disse na conferência que existem “desigualdades significativas” no acesso a água potável e a saneamento. Numa intervenção por videochamada, referiu que os “usos pessoais e domésticos devem ser priorizados” em relação a outros que busquem lucros. Para que “não nos falte água nem hoje nem no futuro”, é preciso ter consciência da disponibilidade de água e ter “políticos com a coragem para tomar as decisões necessárias, mesmo que não sejam populares”.

É, portanto, “urgente” passar das palavras para a acção, asseverou o presidente da associação Zero, Francisco Ferreira. “Temos muitos documentos, mas em termos de acção não se está a passar para o terreno”, considerou o também professor na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. “Talvez precisemos da dessalinização, mas precisamos muito mais da eficiência” e de políticas à escala local e regional, afirmou. “Se queremos ser resilientes, temos de garantir que não estamos a ganhar de um lado e a perder do outro.”

Esta conferência decorreu quando se sabe que o território continental português se encontra todo em seca, ainda que tenha havido uma melhoria da situação de seca até 30 de Setembro, mês considerado “chuvoso”: 3,3% do território está em seca fraca; 64,3% está em seca moderada; 32,2% em seca severa e 0,2% em seca extrema, segundo os dados mais recentes disponibilizados no site do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

Mas o problema não é de agora e a “culpa” não é só da seca. “Estamos a sofrer e continuaremos a sofrer os impactos das alterações climáticas”, afirmou o professor Rodrigo Proença de Oliveira, do Instituto Superior Técnico (IST) e coordenador de um estudo sobre as disponibilidades actuais e futuras de água, que mostra que a disponibilidade de água se reduziu em 20% nos últimos 20 anos. O problema não é a seca, “é a situação de escassez” de água. A escassez, explicou, é uma situação causada pelos humanos em que a procura da água se aproxima da disponibilidade da água. Já a seca é um fenómeno temporário em que os valores de precipitação se situam abaixo dos níveis de referência. “A nossa preocupação deve ser a escassez”, afirmou.

Desde 2000, Portugal tem registado “valores de precipitação francamente inferiores à média histórica – e isso é resultado das alterações climáticas”, afirmou o investigador Rodrigo Proença de Oliveira. “Estamos numa situação crítica, é verdade: não devido [apenas] à seca, mas devido à escassez hídrica.”

Estava previsto que o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, estivesse presente na sessão de encerramento da conferência, mas foi substituído pelo secretário de Estado do Ambiente e da Energia, João Galamba. O secretário de Estado referiu que “até ao final do século vai chover ainda menos” e que isso terá um “efeito devastador”, daí que seja necessário poupar água e usá-la de forma regrada. Referiu ainda que a dessalinização não deve ser encarada como “uma solução mágica para todos os problemas”. A gestão da água exige reflexão, disse João Galamba, e é muito importante “olhar para a questão da água com um sistema. No final, questionado pelo PÚBLICO sobre uma possível revisão das medidas de poupança de energia do Governo, o secretário de Estado escusou-se a fazer comentários sobre possíveis alterações.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários