Os “problemas estruturais” do SNS e as carreiras médicas

Será que quando existiam carreiras médicas estruturadas e regime de exclusividade se ouvia falar da falta de médicos? Quando havia carreiras médicas consolidadas alguém ouvia falar em empresas de trabalho médico e de contratos de médicos em prestação de serviço?

Pode parecer insensato, pretender reduzir os problemas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) à atual desestruturação das carreiras médicas e à sua desvalorização. A importância histórica do seu reconhecido papel pioneiro, estruturante e de solidificação para o SNS, merece uma reflexão que atenda os conhecidos problemas do presente, não deitando fora o que de positivo vivemos e experienciamos com o erguer das carreiras médicas.

A acessibilidade, a sustentabilidade, o subfinanciamento e a “organização” são as questões geralmente focadas onde residirão os problemas no funcionamento do SNS. O papel das carreiras médicas e o seu presente “funcionamento” é apenas referido de forma avulsa, em discursos de circunstância, mas, por vezes, sem força nem convicção. Porventura, reconhecendo-se a sua valia depois do efeito explosivo da sua destruição, agora sentido, qual “bomba com retardador” montada há duas décadas atrás, e que se não for, entretanto, desarmadilhada, nem os estilhaços controlaremos.

Curiosamente os problemas que sentimos, vemos e ouvimos, desde há algum tempo a esta parte, são dominados pela inexistência de médicos em numero suficiente no SNS, que garantam a sua sustentabilidade em recursos humanos médicos, designadamente em algumas especialidades, que mantenham a capacidade formativa, que facilitem a acessibilidade com entrada pela porta natural dos Cuidados Primários, que proporcionem escalas de urgência sem sobressaltos, que permitam organizar o ambulatório e a resposta cirúrgica dos hospitais sem meses de espera, que motivem os médicos prevenindo a sua debandada do SNS, que atraiam os profissionais mais jovens com hodiernas propostas e metodologias de trabalho e inovação, que assegurem a progressão técnico-científica e o reconhecimento hierárquico para a liderança dos serviços de saúde que as responsabilidades institucionais impõem.

O que se vem passando, de há algum tempo a esta parte, com a “falta de médicos”, não é apenas pelo elevado número de aposentações na classe médica ou da concorrência (legítima) da “privada”. Exige-se que se questione, porque é que há anos não se ouvia falar de falta de médicos? Será que quando existiam carreiras médicas estruturadas e regime de exclusividade se ouvia falar da falta de médicos? Quando havia carreiras médicas consolidadas alguém ouviu falar em empresas de trabalho médico e de contratos de médicos em prestação de serviço? No passado, quando as carreiras médicas tinham a grelha salarial valorizada, havia falta de médicos? E ouvia-se falar em médicos tarefeiros, e assimetrias remuneratórias? Fará algum sentido pagar milhões de euros a tarefeiros, não investindo preferencialmente nas carreiras médicas? Sem se pretender ser redutor, não será que na resposta a estas questões pode residir parte das soluções para os “problemas estruturais” do SNS?

O que se passa com o esvaziamento das carreiras médicas como as conhecemos leva-nos a dizer que o SNS tem de se queixar de si próprio, ao deixar cair um dos seus pilares: as carreiras médicas. Os factos comprovam-no com a falta de médicos em serviços de urgência, com ênfase nas urgências obstétricas, mas não só.

Sem deslustrar outras carreiras na área da saúde, só por desconhecimento ou desatenção se pode interpretar a defesa das carreiras médica como um assomo de corporativismo serôdio.

Defender as carreiras médicas é defender o SNS, porque continuamos a acreditar na sua universal e incomensurável bondade social, porque é disso que também se trata. Defender as carreiras médicas é defender a formação de qualidade, a diferenciação técnico-científica dos médicos e a avaliação do desempenho.

Um médico na pasta da Saúde é motivo de renovada esperança, para acreditarmos no revigoramento das carreiras médicas, suficientemente atrativas para que os médicos mais jovens as queiram integrar. Há que devolver o orgulho de pertencer ao SNS. Mudemos o rumo, o tempo urge.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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