O processo da escolha

A dúvida serpenteia sobre as nossas cabeças. Quem não arriscou pode ficar preso para sempre na hipótese.

Foi por um triz que não fomos, que não conseguimos, que não chegámos lá. A vida escapa-nos por uma brecha cheia de hipotéticas dimensões onde poderíamos ter sido maiores? Mais ricos? Infinitamente mais felizes?

É diabólico este quadro de suposições. Não quero caber lá. Na verdade, nunca quis. Fui e vi. Vim-me embora quando chegou a hora. Umas vezes demorei-me, perguntando mais tarde, já com a casa arrumada, porquê. Mas as contas fazem-se sempre melhor depois. Fechamos a porta de casa, sentamo-nos no sofá e dizemos: podia ter sido desta vez. Mas não foi.

Há uma solidão que nos acompanha sempre – essa, a da porta que se fecha e um eco de nós próprios, do silêncio da nossa existência, se ouve – sem que a tenhamos convocado. É nessas alturas que as perguntas se lançam sobre nós. Mais do que as perguntas, talvez a dúvida. A dúvida serpenteia sobre as nossas cabeças. Quem não arriscou pode ficar preso para sempre na hipótese.

Responsabilizo a idade pela intuição. Comecei a valorizá-la. Se não quero, é porque não é importante.

Anos passados sobre as hipóteses lançadas, é muito bom lembrarmo-nos do amor ou dos amores, mesmo quando não foram aquilo que sonhámos. Mesmo quando foi por um triz que não o tivemos ou não fomos felizes para sempre. O “triz” dá cabo da nossa fé. O “triz” vai repetir-se pela vida fora e nós vamos cair na tentação de achar que foi quase, que é quase, que está quase para ser qualquer coisa. E depois não é. O falhanço do amor nunca vai deixar de nos acompanhar. Felizmente, há quem não desista. Mas às vezes é tão bom desistir, porque só aí conhecemos a verdadeira liberdade. É no processo da escolha que somos verdadeiramente livres. A cobardia vem em forma de arrependimento quando damos por nós e o “triz” está atrás da consciência.

Tive muita sorte por haver em mim a necessidade de ir sempre em busca de respostas. Ainda hoje vou. Sou incisiva como os dentes. Com os dentes todos. Prefiro fazer ferida a ter uma pele aparentemente inquestionável. Foi por um triz que não vivi aquele amor? Não. Não o vivi porque não tinha de acontecer. Fiz tudo o que era possível. E olhem que nesta possibilidade, os de fora vêem muitas vezes falta de amor-próprio. A falta de amor-próprio é sempre um peso que cai na balança dos outros, são eles que decidem se nos falta ou se o temos na medida quase certa. (Ninguém sabe qual é.)

Se nos permitimos à dúvida, vamo-nos rodear de culpa: podíamos ter sido ou agido de outra forma. Podíamos ter dito antes ou calado depois. Os cenários que a dúvida alimenta são tantos, que o melhor é cortar o mal pela raiz. Ir e, em caso de regresso, voltar muito conscientes do que ficou feito ou não quisemos fazer.

À medida que a idade avança, deixa de haver espaço para a dúvida. Não foi nada por um triz que já não quisemos viver aquele amor. Não quisemos porque o que sentíamos era insuficiente ou porque sabemos – a que sabe a liberdade.

Foi por um triz que não fomos mais felizes? Não mintam a vocês próprios. A coragem merece mais.

Em todos os combates da vida temos de ir inteiros, até quando vimos de lá reduzidos a quase nada. As feridas da batalha contam-nos. Mil vezes inteira, esvaziada de dúvidas, do que cheia de interrogações.

O horizonte há muito que se estreitou na forma como víamos a vida. Algo nos impele a viver. Algo nos obriga a gastar os dias. Cupões querem-se cheios de cruzes assinalando o que já lá vai.

Está a ser-nos dada (enquanto espécie) a hipótese de vivermos, mudarmos e melhorarmos. Há quem não consiga ou não aproveite a boleia. Mas não digam que foi por um triz que não conseguiram.

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