A ascensão dos Irmãos de Itália

O atual partido de Meloni resulta de um processo de participação no jogo democrático italiano e no exercício de cargos de poder que dura há décadas. Apesar de se apresentar como anti-sistema, têm membros que também têm origem no establishment.

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Giorgia Meloni Reuters/YARA NARDI

Depois das tecnocracias de Giuseppe Conte e Mario Draghi, apoiadas sobretudo pelos partidos Movimento 5 Estrelas e Liga, eis que chega ao poder Giorgia Meloni ao leme dos Irmãos de Itália.

Os números de abstenção recorde, especialmente no sul do país onde a esquerda apresenta historicamente melhores resultados, não ofuscam a vitória retumbante de Meloni, que em 2018 tinha conquistado apenas 4,4% do eleitorado. Importa agora conhecer o fenómeno, para além dos chavões simplistas da “extrema-direita” e “fascismo” que tipicamente acompanham as suas caracterizações mediáticas.

Quando comparado com a Liga (o outro partido da família das direitas radicais que compõe a coligação vencedora), os Irmãos de Itália têm, de facto, um passado ligado à extrema-direita – conceito que, na ciência política, não é sinónimo de direita radical e que diz respeito a partidos antidemocráticos stricto sensu.

Na árvore genealógica dos Irmãos de Itália está o MSI (Movimento Social Italiano), um partido com características neofascistas formado no pós-Segunda Guerra Mundial por antigos apoiantes de Benito Mussolini. Com a consolidação da democracia em Itália nas décadas seguintes, o MSI começou invariavelmente a afastar-se das suas raízes antidemocráticas: numa primeira fase, apoiando os vários governos democratas-cristãos que dominaram Itália; e numa segunda fase, no final dos anos 80, com a liderança mais moderada de Gianfranco Fini. Foi com Fini que o MSI se metamorfoseou na Aliança Nacional – um partido, nascido no rescaldo da Operação Mãos Limpas, que procurou sintetizar o nacionalismo do MSI com o conservadorismo do partido da Democracia Cristã (extinto após os escândalos de corrupção).

O partido de Fini representou mais um passo em direção à institucionalização da direita radical italiana, traduzida na participação em governos de coligação com Silvio Berlusconi. Foi a união entre os pragmáticos Fini e Berlusconi que resultou na fundação do PdL (O Povo da Liberdade) – uma força política que sofreria uma cisão interna e daria origem aos Irmãos de Itália, no ano de 2012.

Voltando ao presente, o atual partido de Meloni resulta de um processo de participação no jogo democrático italiano e no exercício de cargos de poder que dura há décadas. Apesar de se apresentar como anti-establishment, têm membros que também têm origem no establishment.

Considerando que, tal como noutros países europeus, a direita clássica tem desaparecido, os Irmãos de Itália têm uma agenda política que outrora estava nas mãos de partidos conservadores do Ocidente, nomeadamente no que toca ao apelo dos valores tradicionais (em oposição aos direitos das pessoas LGBTI, Interrupção Voluntária da Gravidez, etc) mas também na sua vocação atlanticista (neste campo, em divergência com alguma direita radical e extrema-direita europeia). Por outro lado, os Irmãos de Itália apresentam também propostas mais exclusivas da direita radical, de âmbito nacionalista e nativista, como são a exaltação da cultura italiana, a defesa de políticas de imigração mais restritivas e a promoção de um Estado social dirigido à população nativa.

O cocktail programático de Meloni esvaziou a Liga de Salvini e o Forza Italia de Berlusconi. Os dois aliados de coligação perderam parte substancial do seu eleitorado para a nova força liderante da direita italiana; Salvini apresentou o desgaste de quem esteve no poder; e Berlusconi confirmou a tendência de declínio de popularidade que se verifica de eleição para eleição. Na esquerda e centro-esquerda, não se registou capacidade de entendimento entre os vários partidos e a campanha do Partido Democrático não convenceu o eleitorado com o velho apelo do combate ao fascismo.

A ascensão dos Irmãos de Itália foi fulgurante, mas, num país marcado pela instabilidade governativa e pela recorrente transformação e extinção de partidos políticos, o futuro a curto prazo está ameaçado pelo tacticismo político da própria coligação de direita e pelo teste à capacidade para lidar com as ameaças mais prementes: a inflação galopante e um horizonte de recessão económica.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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