Qual é o segredo de Noélia Jerónimo?

A leitora Susana Novais Santos é assumidamente fã da cozinha de Noélia, a chef do restaurante Noélia e Jerónimo em Tavira. Para elogiá-la, não lhe basta prosa, é preciso poesia. E de uma experiência na casa algarvia, traz uma certeza: a sabedoria e os dotes estão assegurados com a filha da cozinheira, Maria Beatriz.

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Noélia no restaurante em Cabanas de Tavira Melanie Maps

“Ser poeta é ser mais alto/É ser maior do que os homens!”

É sempre deste lindíssimo poema de Florbela Espanca, um dos meus preferidos, brilhantemente interpretado pelos intemporais Trovante, que me lembro quando penso na minha querida Noélia Jerónimo. É sempre este lindíssimo poema que para mim canto enquanto me encanto naquele canto de Cabanas.

Qual é o segredo da Noélia? Grande Noélia, poeta maior da Ria Formosa. Ousarei arriscar respostas:

  • Em primeiro lugar, trabalho, muito trabalho. Como dizem os americanos, o único sítio em que o sucesso vem antes do trabalho é o dicionário.
  • A sua enorme genialidade, que lhe é tão natural que nem dela parece aperceber-se. Desliza – ligeira, graciosa, etérea – sobre um verdadeiro talento, que suavemente lhe corre nas veias, que lhe é tão inerente como o respirar.
  • O íntegro respeito pelo produto, que trata com o maior amor e carinho, que eleva com a maior sublevação, a mesma com que eleva a Ria, a sua Ria, que faz mais Formosa.
  • O profundo respeito pelo cliente, que honra como delicado produto, que recebe como digno convidado. A Noélia não serve os clientes. Nem tão pouco os alimenta. A Noélia nutre os seus clientes. Nutre o corpo e a alma de quem tem a felicidade de às suas divinais mãos se poder entregar.

“Morder como quem beija!/É ser mendigo e dar como quem seja/Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!"

Qual é, afinal, o verdadeiro segredo da Noélia?

Grande Noélia, Rainha do Reino de Aquém e de Além Gharb al-Andalus. Ousarei complementar as respostas:

É fazer tudo isto naturalmente, intuitivamente, harmoniosamente. Humildemente. “É ter de mil desejos o esplendor/E não saber sequer que se deseja!/É ter cá dentro um astro que flameja,/É ter garras e asas de condor!”

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Noélia Jerónimo em Cabanas de Tavira Miguel Manso

Por altura da comemoração do 15º aniversário do seu restaurante, tive, uma vez mais, a enorme felicidade de poder deixar-me ir ao sabor dos sabores da Noélia. “É ter fome, é ter sede de infinito!/Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim.../É condensar o mundo num só grito!”

  • Ceviche de dourada: de superior qualidade, a fresquíssima dourada parecia derreter na língua. Abacate a complementar a cremosidade, malagueta a acordar-nos os sentidos para o requintado toque fumado das generosas ovas de arenque. Um verdadeiro upgrade do tradicional ceviche, que bem conheço das minhas aventuras peruanas.
  • Robalo marinado com gaspacho de manga: a humildade da Noélia traduz-se também na descrição, sucinta e singela, que faz dos seus pratos. Ri-me ao pensar nas pomposas descrições que alguns restaurantes fazem de pratos absolutamente banais. Para a nossa Noélia, esta transcendente ode ao robalo é, simplesmente, designada por “robalo marinado”. Gaspacho de manga? Néctar divino.
  • Arroz de forno de robalo e gamba: afamada mestre arrozeira, a Noélia aventurou-se, recentemente, no mundo do arroz de forno, conferindo ao estimado grão uma nova dimensão, organolepticamente mais complexa. Neste prato, perfeito, o robalo, descansando sobre um leito de luxo, lascava branco, fresco, firme, suculento. Gambas grandiosas.

Tanto sabor naquelas cabeças! Tanto saber naquela cabeça! (Não resisti.) Toque de mestre num prato já de si magnífico, uma suprema maionese de alho negro, que tudo holisticamente uniu. “É seres alma e sangue e vida em mim/E dizê-lo cantando a toda a gente!”

No capítulo das sobremesas, entrego-me às doces mãos da Beatriz Jerónimo. Há lá melhor lugar para estar? Há lá melhor lugar para nos confortarmos, depois de deixarmos as mãos da Noélia?

  • Bolo de caramelo salgado com café: “Oh, meu Deus!”, exclamei, quando o vi. O registo manteve-se quando o provei. Amantes de caramelo salgado, venham, venham todos. De que estão à espera?
  • Tarte de amêndoa caramelizada: ainda morna, gritava Algarve. Algarve no Verão, quente, torradinho. Um sonho. De Verão
  • Bolo de amêndoa, gila e limão: como já me habituou a Beatriz a fazer maravilhas do limão! Infundir na gila o sabor de lemon curd e texturizá-lo com pedacitos de amêndoa não é trivial.
  • Bolo algarvio: Conheço muito bem a divinal trilogia do sotavento algarvio – alfarroba, amêndoa e figo. Tantas e tantas fatias de bolo algarvio já devorei! Sei-o nas mais variadas versões – mais ou menos húmido, misturado, em camadas... De tudo já provei. Mas nunca tinha comido nada assim. Como diriam os americanos, “you’ve tried the rest, now try the best”. Chamar “bolo” a este pedaço de céu é um dos maiores eufemismos com que já me deparei. Bolo, Beatriz? Isto não é um bolo! Isto é uma obra de arte! No mínimo, talvez possas chamar-lhe “bolo by Beatriz”.

Futuro certo tem esta jovem mulher, linda como a Mãe, por dentro e por fora. Consigo desde já antever, na porta ao lado, uma bonita e convidativa casa de doces. “By Noélia” e “By Beatriz” side by side. Como na vida, sempre lado a lado. Inseparáveis. Adoro as duas. Como tive oportunidade de aqui escrever recentemente, a propósito da Noélia, há amores que não se explicam.

“E é amar-te, assim, perdidamente.../E é seres alma, e sangue, e vida em mim/E dizê-lo cantando a toda a gente!”

Susana Novais Santos

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