Carris, muito mais do que autocarros e eléctricos

Há um mundo por trás do amarelo dos eléctricos e autocarros que sobressaem nas fotografias e postais de Lisboa. Há uma família que vive para além dos trajectos mais conhecidos dos alfacinhas, que cuida dos seus e cria memórias que ficam para sempre

estudio-p,
Fotogaleria
estudio-p,
Fotogaleria

Um século e meio de vida a ziguezaguear pelas ruas mais estreitas da cidade, a conhecer de cor trajectos dos passageiros de todos os dias. A acenar aos colegas nos semáforos e a trocar histórias e gargalhadas no final de cada turno. Para quem veste diariamente as cores da Carris, as memórias e o convívio continuam para lá da última paragem.

Ema Favila Vieira, Secretária-Geral da Carris, partilha os valores da companhia. “Esta é uma empresa que se orgulha de fazer parte da paisagem de Lisboa e da vida dos que por ela passam e habitam, sempre ao serviço da mobilidade. Mas esta não é apenas uma empresa de transporte público. É, e sempre foi, muito mais que isso. Desde sempre que a Carris promove uma verdadeira cultura de empresa, o espírito de pertença, o «vestir a camisola», em todos aqueles que por ela passaram e todos aqueles que continuam a fazer circular os nossos transportes, dedicando-lhe o seu trabalho”. Ilustrativo desta política da empresa são as ferramentas institucionais que a Carris íntegra.

Mais de nove décadas de música

Quando termina o turno e se troca a farda, há música na Carris. Fundada em 1929, a Banda de Música dos Empregados da Carris é uma associação de fins culturais e sociais que goza de autonomia estatutária e financeira. À sua constituição, juntou-se, além da Banda de Música propriamente dita, a Escola de Música, o Grupo Coral e a Orquestra Ligeira. Ao longo dos mais de noventa anos de existência, a Banda de Música da Carris tem levado mais longe o nome Carris, através da música, promovendo um vasto conjunto de actuações e iniciativas que visaram sempre espalhar o gosto pela música, espelhando a alma Carris, e fomentando o convívio em momentos de lazer, no interior e exterior da Carris. Por outro lado, desde o início da sua existência que a Banda de Música dos Empregados da Carris tem procurado associar-se a acções de solidariedade, vincando assim o seu carácter social. Este ano a Banda celebra 93 anos de existência.

Foto
Actuação da Banda de Empregados da C.C.F.L por ocasião do Final do Campeonato Nacional de Futebol 1969-1970. Arquivo Carris

De barba sempre aparada

A família da Carris contou também, até 2008, com instalações de barbearias. Em Abril de 1903, as Estações da Companhia Carris de Ferro de Lisboa, Santo Amaro, Amoreiras e Arco do Cego, começaram a ter a seu serviço uma barbearia, para os funcionários se apresentarem ao trabalho condignamente. Aí, os funcionários podiam fazer a barba duas vezes por semana, e cortar o cabelo duas vezes por mês, gratuitamente.

Até aos dias de hoje, os funcionários da Carris usufruem de um serviço de saúde. Este remonta a 1878, altura em que foram dados os primeiros passos para a sua criação, e foi aprovado em Assembleia Geral de Accionistas em Fevereiro de 1879. Ao longo dos anos, o serviço de saúde da Carris acompanhou todo o seu efectivo através de postos médicos instalados em todas as estações.

Foto
Recriação da barbearia no Museu da Carris. Filipa Bernardo

Lugar de campeões

Desde 1914 que, para alegria dos funcionários apaixonados por desporto, há um grupo desportivo na Carris. Celebra, em 2022, 108 anos de existência e o seu objectivo é o bem-estar dos funcionários da Carris – do qual depende, como se sabe, a actividade física. E esta é uma prática levada a sério, já que desde os seus primeiros tempos que os atletas do Grupo Desportivo da Carris se destacam em várias modalidades, nos campeonatos organizados pela FNAT (actual INATEL), desde 1935, nomeadamente em Atletismo, Hóquei em Campo, Andebol e Futebol. A sede do Grupo Desportivo é no interior das instalações da Carris em Santo Amaro, onde dentro do pavilhão multidesportivo e do ginásio, treinam as equipas de Andebol, Futebol e Karaté. Actualmente, além destas modalidades, pratica-se também BTT, caminhada, e-Sports, Automobilismo e Karting, Futebol, Atletismo, Cicloturismo e Motociclismo.

Foto
Grupo Desportivo da Carris Arquivo Carris

Espólio de incontáveis memórias

Para contar esta e outras histórias da família dos autocarros e eléctricos amarelos, está o Museu da Carris, inaugurado a 12 de Janeiro de 1999 e reaberto ao público a 19 de Abril de 2022, e que se encontra na Estação dos Eléctricos da Carris de Santo Amaro. A sua missão é preservar e conservar o valioso acervo da Companhia Carris de Ferro de Lisboa e divulgar o papel do mesmo como parte integrante e incontornável na História da cidade de Lisboa. Através de uma inesquecível viagem no tempo, leva-nos pelas histórias do quotidiano de motoristas, guarda-freios e passageiros que ficam para sempre na memória da cidade e dos veículos que a percorrem.

No Museu da Carris encontram-se veículos históricos (eléctricos e autocarros) e peças relativas às áreas acessórias da empresa, procurando assim ser, para quem visita, uma ponte entre o seu presente, passado e futuro. Promove regularmente programas de índole cultural e educativa, com o objectivo de encontrar, no universo artístico, ideias e perspectivas para um futuro sustentável, através da arte e inovação pela criatividade. Outra das missões do Museu é a divulgação e formação dos seus colaboradores, sobre a História, a cultura empresarial e a relação com a cidade.

Foto
Visitar o Museu é perceber como a Carris é parte integrante da cidade de Lisboa, é viajar no tempo, desde o tempo do veículo a tracção animal até ao autocarro eléctrico.” Ema Favila Vieira, Secretária-Geral da Carris e Directora do Museu da Carris

Para Ema Favila Vieira, a visita ao Museu da Carris é uma experiência enriquecedora e inesquecível: “Visitar o Museu é perceber como a Carris é parte integrante da cidade de Lisboa, é viajar no tempo, desde o tempo do veículo a tracção animal até ao autocarro eléctrico. Alguns dos nossos visitantes andam de eléctrico pela primeira vez, quando vêm ao Museu. Aliás, o Museu está integrado numa das Estações de Eléctricos mais bonitas do mundo, que vale muito a pena visitar”, contextualiza a também Directora do Museu da Carris.

Este espaço está dividido em dois núcleos: o núcleo I apresenta a evolução histórica da Carris através de documentos, fotografias, uniformes, títulos de transporte, entre outros pequenos objectos; o núcleo II está instalado em naves oficinais entretanto desactivadas, onde se exibem viaturas de transporte, máquinas do parque oficinal e ainda uma zona dedicada à Oficina de Tipografia da Companhia Carris de Ferro de Lisboa, que funcionou até 2003. A ligação entre os núcleos é feita por um carro eléctrico de 1901, que integra a colecção do Museu.

Museu da Carris
Museu da Carris
Autocarro que faz parte do espólio do Museu da Carris
Museu da Carris
Fotogaleria
Museu da Carris

No primeiro núcleo há quatro salas organizadas cronologicamente e cinco espaços temáticos, que permitem ao visitante viajar até aos primeiros tempos da Carris, desde a constituição da empresa, onde a tracção animal ainda era uma realidade, passando pelo aparecimento dos ascensores e a adopção da tracção eléctrica, até aos momentos mais marcantes da Carris ao longo do século XX e início do século XXI. Neste espaço, existe uma sala temática dedicada aos ascensores e elevadores, que podem ser visitados virtualmente, a partir de um ecrã touch, e tirar uma “selfie” com o histórico letreiro do Ascensor da Bica, recuperado para o museu. É possível também visitar a reconstituição de uma área administrativa e de um posto médico, lembrar as antigas barbearias, e finalmente, observar instrumentos e informações alusivas à Banda de Música dos Empregados da Companhia Carris de Ferro de Lisboa.

No segundo núcleo encontram-se os veículos, desde uma réplica do Carro Americano, passando por um eléctrico salão aberto de 1902, os primeiros eléctricos construídos nas oficinas da Carris e finalmente os eléctricos do pós-guerra. Podem ainda ser visitados, por exemplo, os autocarros verdes de dois pisos vindos de Londres ou recordar um dos “laranjas”, um Volvo de 1975. No final deste espaço encontra-se o Serviço Educativo, onde se realizam várias actividades como oficinas, workshops e aniversários. A sua programação está disponível no site do museu.

No museu existe ainda uma biblioteca onde é possível consultar diversos documentos ligados à empresa e ao próprio espaço museológico, mas para visitá-la é necessária marcação prévia.

Em suma, o universo da Carris estende-se muito para além dos autocarros e eléctricos amarelos. Tal como explica Ema Favila Vieira, “Com efeito, não são muitas as empresas que se podem regozijar de acolher um equipamento cultural como é o Museu da Carris, que conta a nossa história e posiciona-nos na linha da frente do mundo dos transportes rodoviários; um Grupo Desportivo (com 108 anos); uma Banda de Música dos seus colaboradores (com 93 anos); e uma Associação representativa dos nossos Reformados (Areca). Tudo isto faz parte do universo Carris e da sua identidade. Tudo isto leva consigo a missão, os valores, a imagem, a voz e a cultura da empresa, para além dos rodados e dos carris. Sempre ao seu lado”.


Este artigo faz parte da Revista 150 anos da Carris, que foi distribuída gratuitamente com o jornal Público no dia 17 de Setembro de 2022.

Sugerir correcção
Comentar