Kiev quer armas de longo alcance e o medo de uma invasão cruzou a fronteira

A retirada de Kharkiv é vista com apreensão e incredulidade por quem mora na zona russa junto à Ucrânia. Zelensky pressiona para receber material militar mais sofisticado.

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Tanques russos abandonados após a retirada da região de Kharkiv Reuters/UKRAINIAN ARMED FORCES

Entusiasmados com a rapidez e a dimensão dos recentes sucessos militares na região de Kharkiv, responsáveis políticos ucranianos têm intensificado a mensagem de que é possível vencer a Rússia no campo de batalha e pedem aos países aliados que enviem mais armas e mais sofisticadas.

Mikahilo Podoliak, um dos principais assessores de Volodymyr Zelensky, e que em tempos liderou a delegação ucraniana às negociações de paz com Moscovo, publicou mesmo uma lista de material necessário “para acelerar a guerra e expulsar a Rússia da Ucrânia”. Kiev quer mais sistemas de lançamento múltiplo de foguetes (MLRS, na sigla inglesa), tanques e veículos blindados, sistemas defensivos antiaéreos e drones.

Os Estados Unidos aprovaram esta semana o envio de mais um pacote de armamento para a Ucrânia, incluindo sistemas de lançamento Himars e mísseis de médio alcance. Zelensky, no entanto, tem pressionado funcionários da Administração Biden para que o país forneça mísseis de longo alcance, nomeadamente os chamados ATACMS.

Trata-se de um tipo de míssil guiado por satélite que pode atingir alvos a mais de 300 quilómetros de distância. Se for enviado para a Ucrânia e for utilizado na frente de guerra, o seu raio de acção abrange território russo.

O Presidente americano tem manifestado reservas quanto ao envio deste armamento e, segundo o The New York Times, terá pedido ao Pentágono uma opinião sobre que utilidade teríam os mísseis de longo alcance na contra-ofensiva ucraniana. Os peritos terão respondido que as vantagens seriam poucas.

Quando decidiu fornecer Himars a Kiev, em Junho, Joe Biden fez questão de escrever um artigo naquele jornal para garantir à Rússia que não estava “a encorajar ou a permitir que a Ucrânia dispare para lá das suas fronteiras”. O Kremlin avisou várias vezes que consideraria o envio de armas de longo alcance como uma interferência directa dos Estados Unidos na guerra, abrindo caminho a uma retaliação de contornos imprevisíveis.

Os governantes ucranianos têm dito que não querem o armamento para atingir alvos em território russo e nunca reivindicaram a autoria de qualquer ataque na região de Belgorod, a mais próxima da fronteira com a Ucrânia na zona de Kharkiv.

Incompreensão em Belgorod

Mas nessa região russa as explosões têm sido cada vez mais frequentes e entre sexta e sábado morreram pelo menos duas pessoas em ataques a alvos militares. O governador regional ordenou inspecções a todos os abrigos antibomba e decretou a suspensão das aulas presenciais. Em zonas próximas a Belgorod estão a construir-se barricadas.

Ao verem regressar os soldados que se retiraram de Kharkiv, os cidadãos da zona fronteiriça têm reagido com incredulidade e medo. Correm rumores entre a população de que o Exército ucraniano pode invadir aquela parte da Rússia. “Toda a gente está preocupada que haja confusão. Ontem ouviram-se explosões muito fortes”, disse ao El País um habitante de Shebekino, uma vila a menos de 10 quilómetros da fronteira.

Quem também está incrédulo são os ucranianos que colaboraram com a administração russa durante os meses de ocupação e fugiram para Belgorod com medo de represálias. “Sentimos muita incerteza e não percebemos nada do que se está a passar”, afirmou uma dessas pessoas ao Wall Street Journal. “A população acreditou quando os russos disseram que não nos deixariam”, acrescentou outra.

Na capital regional não são muitos os que aceitam falar com meios de comunicação ocidentais – ou até russos, como testemunhou o The Moscow Times –, mas há quem critique a estratégia e a actuação da tropa russa em Kharkiv. “As pessoas viviam com medo. Não havia ligações, não podiam comunicar e falar com os familiares. E depois havia desespero e pobreza”, analisa um homem. “Como eles não repuseram as condições de uma vida normal, os residentes rapidamente aceitaram o regresso dos ucranianos.”

As relações de proximidade transfronteiriças são grandes. Uma mulher russa contou ao The Guardian que mora com a filha em Belgorod, de onde é originária, e que o seu ex-marido e pai da criança é ucraniano e mora em Kharkiv. Foi chamado para combater pela Ucrânia. “Perdi a cabeça e disse-lhe coisas muito desagradáveis”, admite ela. “Tudo pode acontecer. Quero salvar o pai da minha filha”, desabafa.

“Não compreendo a política do nosso presidente”, diz o interlocutor do El País. “Entrar na Ucrânia foi uma decisão só dele. É incompreensível. Toda a gente vivia como sempre, de casa para o trabalho, do trabalho para casa. E, de repente, é… bam, bam, bam”, lamenta.

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