Ucrânia perdeu o rasto a milhares de crianças que foram dispensadas dos orfanatos

As instituições de acolhimento ucranianas devolveram às famílias milhares de crianças cujo paradeiro ou condições de vida são hoje desconhecidos. A guerra, em 2022, e a pandemia de covid-19, nos dois anos anteriores, precipitaram esta “devolução”, que foi mal documentada. “A menos que se visitem todos os menores, é impossível determinar se algum se encontra desaparecido”, diz representante da UNICEF.

Tetyana Ponomarchuk, técnica de apoio social, de 61 anos, conforta Tanya, de 12 anos, uma menina autista numa instituição para pessoas com necessidades especiais duante a invasão russa da Ucrânia, em Odessa. Junho de 2022 REUTERS/Pavlo Palamarchuk
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Tetyana Ponomarchuk, técnica de apoio social, de 61 anos, conforta Tanya, de 12 anos, uma menina autista numa instituição para pessoas com necessidades especiais duante a invasão russa da Ucrânia, em Odessa. Junho de 2022 REUTERS/Pavlo Palamarchuk

Quatro meses após o início da invasão russa da Ucrânia, um alarme soou em Odessa. O começo de uma vaga de bombardeamentos anunciava perigo iminente. Nesse momento, todas as crianças de um dos orfanatos da cidade foram encaminhadas pelo staff para a cave do edifício, onde ficariam, a curto prazo, relativamente mais protegidas. A longo prazo, porém, revelava-se insustentável a sua permanência, o que motivou uma mudança.

Tanya, uma menina autista de 12 anos que permanecia ao cuidado do Estado há quatro anos, foi, em conjunto com outras crianças de outras instituições de Odessa, encaminhada para um antigo hospital na aldeia de Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk. A viagem de comboio de 800 quilómetros, feita a 15 de Junho, conduziria a um destino mais seguro, mais afastado do conflito.

Foi à chegada que os técnicos se aperceberam que Tanya e 16 crianças que fizeram a viagem não estavam listadas na base de dados nacional da Ucrânia, onde foram inscritas apenas a 25 de Julho, mais de um mês depois da migração. O registo das crianças é relevante, uma vez que só a partir dele é que se conhece o seu paradeiro, a quem estão entregues e em que condições se encontram.

A situação destas crianças não é um caso isolado. Aliás, longe disso; a situação pode ser bastante mais preocupante. De acordo com a Reuters, 38.800 crianças ucranianas que estavam ao cuidado do Estado, em 700 instituições, a tempo inteiro, foram dispensadas e devolvidas aos pais ou guardiães legais. O seu paradeiro, assim como as condições em que vivem, é, por ora, desconhecido devido à má gestão do processo de reencaminhamento.

Não é, porém, a primeira vez que este tipo de devolução de crianças às famílias é levada a cabo pelas instituições ucranianas. A UNICEF salienta que, no surgimento da pandemia de covid-19, 42 mil menores foram igualmente entregues às famílias ou guardiães sem que existisse verificação se esses teriam condições para recebê-las e mantê-las condignamente e em segurança.

A UNICEF e várias equipas do governo estão a tentar localizar e visitar as crianças não registadas, de forma a garantir que se encontram bem. Porém, existe receio, por parte da ONU, que algumas tenham sido expostas a violência ou mesmo a tráfico humano (embora, sublinha a agência noticiosa, não haja evidências de que isso se verifique, o que muito se deverá às limitações que existem no próprio processo de comunicação com as famílias).

Os Serviços Sociais Ucranianos (SSU), incumbidos de zelar pelos direitos dos menores, dizem à Reuters que “tudo o que é possível tem sido feito no sentido de preservar as vidas e a saúde das crianças e de prevenir que se encontrem no epicentro das hostilidades”.

De acordo com dados da UNICEF, metade dos menores que vivem nos orfanatos ucranianos tem algum tipo de deficiência. O país tem, de acordo com dados da União Europeia, a maior taxa de institucionalização infantil da Europa – abrange 1% de todas as crianças ucranianas. Muitas delas, afirma a Comissão para os Direitos Humanos da ONU, chegaram às instituições por serem vítimas de negligência, abuso e/ou restrições físicas. Mas não só.

Outras crianças provêm de famílias demasiado pobres ou sem as condições especiais necessárias para cuidar de pessoas com deficiência. Um estudo levado a cabo pela Comissão dos Direitos das Crianças ucraniana concluiu que 80% dos menores foram institucionalizados devido a falta de condições financeiras das famílias que, tipicamente, após o nascimento do segundo filho, passavam a viver abaixo do limiar da pobreza.

Existem também crianças, diz Daria Herasymchuck, comissária dos Direitos das Crianças do governo do governo de Zelensky, que foram abandonadas por famílias de acolhimento ou guardiães durante este período de guerra e ainda outras que abandonaram a Ucrânia, na companhia dos mesmos, nos primeiros dias de conflito, sem que se saiba o que decorreu após essa migração.

Não existem dados relativos a crianças desaparecidas, embora isso não seja sinónimo de que não haja menores nessas circunstâncias. A UNICEF tem como prioritária a averiguação da situação de 13 mil menores a cargo de instituições do Estado a tempo inteiro, aquelas que considera estarem numa situação de maior vulnerabilidade. “A menos que se visitem todos os menores, é impossível determinar se algum se encontra desaparecido”, diz Aaron Greenber, conselheiro sénior da UNICEF.

Tanya, 12 anos, observa as outras crianças a desenhar sobre o pavimento com giz, na instituição onde reside, em Odessa, Ucrânia
Tanya, 12 anos, observa as outras crianças a desenhar sobre o pavimento com giz, na instituição onde reside, em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
Professora Irina Nikolaeva Ogurtsova conduz as crianças para a cave do edifício quando o alarme de raide aéreo é activado, em Odessa, Ucrânia
Professora Irina Nikolaeva Ogurtsova conduz as crianças para a cave do edifício quando o alarme de raide aéreo é activado, em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
A enfermeira Ekaterina Masiuk, de 57 anos, conduz uma das residentes para um abrigo numa instituição para pessoas com necessidades especiais, em Odessa, Ucrânia. Junho de 2022
A enfermeira Ekaterina Masiuk, de 57 anos, conduz uma das residentes para um abrigo numa instituição para pessoas com necessidades especiais, em Odessa, Ucrânia. Junho de 2022 REUTERS/Pavlo Palamarchuk
Crianças descem as escadas até à cave do edifício, onde ficam mais protegidas dos bombardeamentos russos que se fazem sentir em Odessa, Ucrânia
Crianças descem as escadas até à cave do edifício, onde ficam mais protegidas dos bombardeamentos russos que se fazem sentir em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
Enfermeira Rita Barba, 52 anos, conforta as crianças na cave da instituição, onde o grupo se protege dos bombardeamentos russos sobre a cidade de Odessa, na Ucrânia
Enfermeira Rita Barba, 52 anos, conforta as crianças na cave da instituição, onde o grupo se protege dos bombardeamentos russos sobre a cidade de Odessa, na Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
Tanya sentada na companhia de outras crianças na cave do orfanato após um raid aéreo, em Odessa, Ucrânia
Tanya sentada na companhia de outras crianças na cave do orfanato após um raid aéreo, em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
Funcionária da instituição Oksana Kogat coloca as sopas na mesa na instituição para pessoas com cuidados especiais, em Odessa, Ucrânia
Funcionária da instituição Oksana Kogat coloca as sopas na mesa na instituição para pessoas com cuidados especiais, em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
A sopa está servida, na instituição para crianças com necessidades especiais, em Odessa, Ucrânia
A sopa está servida, na instituição para crianças com necessidades especiais, em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
Olga Slivka, 18 anos, interna da instituição, participa numa actividade, em Odessa, Ucrânia
Olga Slivka, 18 anos, interna da instituição, participa numa actividade, em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
Politecina Lida, 26 anos, brinca no ginásio numa instituição para pessoas com necessidades especiais, em Odessa, Ucrânia
Politecina Lida, 26 anos, brinca no ginásio numa instituição para pessoas com necessidades especiais, em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
A professora Irina Nikolaeva Ogurtsova posa para uma fotografia na instituição para crianças com necessidades especiais, em Odessa, Ucrânia
A professora Irina Nikolaeva Ogurtsova posa para uma fotografia na instituição para crianças com necessidades especiais, em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
Uma criança é ajudada a sair para o exterior no centro de reabilitação Lelechenya, em Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk, após o grupo ter sido evacuado do centro onde residia, em Odessa, Ucrânia
Uma criança é ajudada a sair para o exterior no centro de reabilitação Lelechenya, em Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk, após o grupo ter sido evacuado do centro onde residia, em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
Tanya é confortada por uma técnica da instituição em Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk, o local para onde o grupo foi evacuado após os bombardeamentos em Odessa
Tanya é confortada por uma técnica da instituição em Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk, o local para onde o grupo foi evacuado após os bombardeamentos em Odessa REUTERS/Pavlo Palamarchuk
Criança brinca no centro de reabilitação onde vive, em Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk, após o grupo ter sido evacuado do centro onde residia, em Odessa, Ucrânia
Criança brinca no centro de reabilitação onde vive, em Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk, após o grupo ter sido evacuado do centro onde residia, em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
Criança no exterior do centro em Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk, para onde o grupo se mudou após os bombardeamentos, em Odessa, Ucrânia
Criança no exterior do centro em Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk, para onde o grupo se mudou após os bombardeamentos, em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
As crianças retiram os sapatos antes de entrarem na instituição onde residem, em Odessa, Ucrânia
As crianças retiram os sapatos antes de entrarem na instituição onde residem, em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
As camas no centro de reabilitação, em Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk, o local para onde o grupo foi evacuado após os bombardeamentos em Odessa, Ucrânia
As camas no centro de reabilitação, em Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk, o local para onde o grupo foi evacuado após os bombardeamentos em Odessa, Ucrânia REUTERS/Pavlo Palamarchuk
Tanya dorme em Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk, o local para onde o grupo foi evacuado após os bombardeamentos em Odessa
Tanya dorme em Dzhuriv, na região Ivano-Frankivsk, o local para onde o grupo foi evacuado após os bombardeamentos em Odessa REUTERS/Pavlo Palamarchuk