O sócio que atira a primeira pedra

Têm os sócios direito a apedrejar os treinadores, os atletas, os familiares ou os vizinhos? Não. Claro que não

Um sócio de um clube de futebol não é o mesmo quando pertence à confraria gastronómica ou à irmandade das almas ou à cooperativa da região. Ainda que a pertença às coletividades seja importante para nós, quer no exercício da cidadania, quer como pessoas que vivem no Terceiro Setor e/ou na Economia Social, ser sócio de um clube é diferente de ser sócio da SAD que gere secções desse clube, ser simpatizante ou apostador.

Quem pertence à irmandade das almas, imbuído por sentimentos de piedade e de religiosidade próprias, encara-o como uma missão que valoriza a comunidade presente e passada (seja presente e passado o que forem), em redor de uma capela ou de um templo religioso cristão. São pessoas também com muitos defeitos mas têm, desde logo, a virtude de zelarem por um património material e imaterial que é da comunidade e, por extensão, da própria Humanidade.

Quem pertence a uma confraria gastronómica dinamiza, nas várias atividades, produtos de base endógena, muito associados a um espaço geográfico e cultural. Os confrades, na generalidade dos encontros, para lá da exposição social e mediática, para lá do engrandecimento do prestígio próprio e dos grupos associados, procuram fomentar o valor de vinhos, azeites, fruta, enchidos, doçaria, etc. que têm o seu impacto local. Mas quem pertence, como sócio, a um clube é diferente.

Antes de lá chegarmos, recuperemos os outros dois graus desta ordem: o apostador e o simpatizante. O apostador de um clube pegou nuns trocos e apostou num resultado. Portanto, mais do que ter apoiado/suportado o clube, ele deseja o resultado de um encontro desportivo. É um desejo limitado nalguns minutos ou horas do dia que terá uma sensação de prazer ou de desgosto no final, em função do valor do dinheiro para aquela pessoa. Já o simpatizante percebe que fica muito contente ou menos contente com a série positiva ou negativa de resultados de um dado clube, na generalidade das modalidades. Soube, por acaso, que o clube ganhou num jogo que minutos antes desconhecia. Fica contente por dois minutos e vai à vida. O clube perdeu nesse jogo que não sabia minutos antes. Fica aborrecido por três minutos e vai à vida. É mais ou menos parecido (como o clássico Desmond Morris comentava) com o namoro adolescente. Ela sorriu? Excelente. Ela virou a cara? Que chatice!

Já o sócio do clube é diferente. Quase é um indivíduo casado com o clube. Ele investe no clube — paga uma quota. Essa quota custou esforço, dias maus no trabalho, suor, dores de cabeça. Essa quota é menos um jantar com a família ou com os amigos por mês e alguns por ano. Essa quota representa um custo de oportunidade que é valioso. Por isso, o sócio de um clube quer muitas coisas desse clube. Vitórias, o mais importante; que ele cresça e ajude a comunidade, também importante; que ele nos dê mais oportunidades de sorrir, rir, andar bem-dispostos do que aborrecidos. Para sofrer com os jogos, basta ir a um café ou assistir à distância, se não for ao estádio. Mas o sócio não quer só sofrer durante e ganhar no fim, o sócio quer mais do clube. Colocou lá o sagrado do seu trabalho. Quer portanto parte do paraíso como recompensa.

Agora, têm os sócios direito a apedrejar os treinadores, os atletas, os familiares ou os vizinhos? Não. Claro que não. Nem eles, nem nós. Mas quem o faz não é sócio, simpatizante, apostador, irmão das almas ou confrade. É um criminoso que sabe melhor punir o mau desempenho alheio do que controlar a sua falta de civismo, de tolerância e de humanidade.

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