Não é “fake news”: Bolsonaro disse mesmo “aquela” palavra

Marcelo Rebelo de Sousa não podia ter deixado de ir ao bicentenário da independência do Brasil. Mas para sua e nossa sorte, já não estava no pódio quando aquilo aconteceu.

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Enquanto esperava pela cerimónia dos 200 anos da independência do Brasil, lembrei-me da história — triste e cómica — da Real Biblioteca de Portugal que, em 1807, ficou esquecida no cais de Lisboa, quando a corte de D. João VI se mudou à pressa para o Rio de Janeiro.

O rei quis evitar o saque napoleónico dos “tesouros” do império e salvar património importante. Não podendo levar o Mosteiro dos Jerónimos, empacotou “cultura móvel”.

Na confusão da partida, a caravela com a “livraria real” — 60 mil livros, manuscritos, mapas e moedas — ficou no porto e só chegou ao Rio três anos depois.

Não sei se foi muito consultada nos dez anos seguintes. Sei que quando D. João VI regressou a Lisboa e o Brasil se tornou independente — fez esta quarta-feira 200 anos — o filho D. Pedro, primeiro imperador do Brasil, quis ficar com a biblioteca e comprou-a a Portugal.

O negócio foi selado entre pai e filho num anexo ao Tratado de Paz. Duzentos anos depois, os 60 mil livros continuam no Rio de Janeiro, na Biblioteca Nacional do Brasil.

Penso nesta história sempre que leio sobre património contestado. E aí imagino o momento em que alguém em Portugal vai exigir que o Brasil devolva a Real Biblioteca de Portugal a Portugal. Já faltou mais.

Hoje é consensual que a “real biblioteca” portuguesa é brasileira e que é irrealista desfazer as circunstâncias que levaram aqueles livros até ao Brasil. Depois de todo o ouro transportado do Brasil para as igrejas e palácios em Portugal, seria um desplante pedir este “tesouro” de volta. Pedíamos os livros e, em troca, devolvíamos o ouro que arrancaríamos dos nossos altares? E depois? Quando puxamos o fio, o novelo da História é infinito.

Estava eu a pensar nesta hipótese descabelada quando começou a cerimónia dos 200 anos da independência do Brasil. Marcelo Rebelo de Sousa está ao lado de Jair Bolsonaro e todos nós sabemos os quilos de sentido de Estado, de História e de diplomacia que são necessários para se estar ali com um sorriso.

Há três anos de ideias chocantes, há o cancelamento do almoço este Verão, há o lema de António de Oliveira Salazar, “Deus, pátria e família”, que Bolsonaro repetiu há dias à frente do coração de D. Pedro, que era um liberal, o oposto de Bolsonaro. Marcelo não se identifica com Bolsonaro, não é preciso explicar mais nada. Quem se identifica com o Presidente brasileiro é o líder do Chega.

Não é por acaso que falo do Chega. Os laços entre André Ventura e Jair Bolsonaro são conhecidos — há um ano, chegou a ser anunciada a vinda do filho Eduardo Bolsonaro, deputado federal, para participar na campanha do Chega nas eleições autárquicas. Não é por acaso que Ventura é conhecido no Brasil como “Bolsoluso”. E não é por acaso que dois em cada três votos do Chega serão de imigrantes brasileiros — aprendi isso com o Presidente Rebelo de Sousa que, numa entrevista à CNN-Portugal, disse que “não compreendia” o discurso do Chega “sobre imigração, porque dois terços do eleitorado do partido é de imigrantes brasileiros e, porventura, africanos”.

A cerimónia dos 200 anos da independência do Brasil foi avançando. Fui de surpresa em surpresa até à surpresa final. Retive três:

Surpresa 1: Marcelo está ao lado de Bolsonaro no balcão dos convidados de honra e aparece uma bandeira do Brasil adulterada na qual, em vez do brasão central com as palavras “Ordem e Progresso”, há um bebé e as frases “Brasil sem aborto” e “Brasil sem drogas”. Especulava-se que Bolsonaro iria usar a cerimónia para fazer um comício — as eleições estão à porta —, o que a lei brasileira considera crime. Mas era difícil imaginar que Bolsonaro descesse tão baixo.

Surpresa 2: aparece Luciano Hang, empresário multimilionário que o El País descreve como “o mais engajado empresário bolsonarista”. Hang não se junta apenas à comitiva. Bolsonaro puxa-o para o seu lado. E não para qualquer lado. Hang fica no meio, entre Bolsonaro e Marcelo, assim despromovido pelo mecenas de extrema-direita. Mais baixo ainda.

Surpresa 3: Bolsonaro diz aquela palavra e puxa pela multidão para que o acompanhe em coro. Grita “Imbrochável” cinco vezes e o povo alinha. Parece fake news, mas não é. Nas cerimónias oficiais dos 200 anos da independência do Brasil, o Presidente disse que é “imbrochável”. Nos jornais brasileiros há entrevistas com urologistas sobre disfunção sexual. Não estou a brincar.

Marcelo Rebelo de Sousa não podia ter deixado de ir. Mas para sua e nossa sorte, já não estava no pódio quando isto aconteceu.

Nota: localização actual da biblioteca real portuguesa do século XIX é a Biblioteca Nacional do Brasil e não o Real Gabinete Português de Leitura.

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