Joana Micael vigia as espécies que invadem o mar islandês

Joana Micael está na Islândia a estudar as espécies marinhas invasoras que já se instalaram em praticamente todos os portos do país. O aumento médio da temperatura do mar islandês, que poderá chegar aos 3 graus ainda este século, vai permitir uma maior proliferação destas espécies, com potencial para fazer desaparecer as nativas

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NFS Nuno Ferreira Santos - 08 Julho 2022 - reportagem na Islandia para acompanhar seis biologos ( investigadores ) portugueses que estao a trabalhar nas areas da biodiversidade ( ambiente ) e das alteracoes climaticas - Joana Micael - trabalha com especies invasoras marinhas no Southwest Iceland Nature Research Centre. Estivemos com ela no porto de Garðvegi Nuno Ferreira Santos

Sempre que entram no edifício do Centro de Pesquisa da Natureza do Sudoeste da Islândia (Náttúrustofa Suðvesturlands, no original), funcionários e visitantes são recordados de que não podem dar como certa a presença nas suas vidas de qualquer espécie com que hoje convivem. Essa função cabe a uma gigantesca morsa embalsamada, ali colocada. A espécie já habitou as costas do país, mas foi caçada até à extinção. Hoje, a bióloga portuguesa Joana Micael, que ali trabalha, anda a braços com a chegada de outras espécies ao mar islandês. E de como elas podem contribuir para tornar aquelas águas bem menos ricas e diversas.

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Formada na Universidade dos Açores, Joana Micael trabalhou durante quatro anos no Chile, antes de regressar à Europa, com o marido, o biólogo Pedro Rodrigues, que hoje dirige o RIF - Field Station, uma estação de campo que tem como objectivo o estudo e a monitorização da paisagem subárctica única da península de Melrakkaslétta, no Norte da Islândia. No Verão de 2018, foi convidada para se juntar ao Náttúrustofa, como investigadora. “Convidaram-me para vir passar três meses a estudar as espécies não-indígenas marinhas, aqui na Islândia. A ideia era perceber se me adaptaria ao trabalho cá, com um clima diferente, diferentes águas, tudo o mais”, diz. Quatro anos depois, ainda ali está.

A principal função do centro é prestar apoio ao Governo, na monitorização ambiental de várias espécies, por exemplo. Por ali, tanto se pode trabalhar com borboletas como com os caminhos pedestres da região ou as aves que lá se fixam. Mas o espaço tem também uma componente de investigação, que é onde o trabalho de Joana Micael mais se insere.

Em tanques no interior do próprio centro estão algumas das espécies não-indígenas que têm ocupado as costas da Islândia. Como o caranguejo-da-rocha (Cancer irroratus), proveniente da América do Norte, e que já se encontra por ali pelo menos desde 2006. Ou as navalhas ou lingueirão (Ensis terranovensis), que a equipa do centro identificou pela primeira vez em 2020. “Nós só as detectamos em 2020, mas uma pessoa já encontrou uma concha em 2019. Para já, tem uma distribuição muito localizada, em quatro ou cinco spots, mas está cá o ano inteiro e já chegou a estas dimensões. Antes, não existia de todo. Há uma muito semelhante na Europa, que tem invadido tudo, e pensamos que seria igual, mas fizemos uma análise genética e percebemos que esta é do Canadá”, explica, segurando uma das navalhas entre os dedos.

Lucro versus biodiversidade

Espécies invasoras como estas tendem a não ser mal vistas pela população, mesmo que possam causar danos à biodiversidade local, ocupando os espaços das espécies nativas. “As pessoas olham para estas espécies como a possibilidade de um recurso. Querem perceber se a abundância é suficiente para sustentar um recurso”, explica a investigadora. Ou seja, se pode desenvolver-se em número e qualidade suficientes para ser vendida e dar lucro. Mesmo que isso signifique perder algo. No caso do caranguejo-da-rocha, ele até pode ser um recurso (embora uma bactéria que lhe cobre a carapaça de manchas negras, fragilizando-a, esteja a revelar-se um problema nesse campo), mas a verdade é que por causa da sua expansão nas costas islandesas, “as outras espécies de caranguejo estão a desaparecer”, diz a bióloga.

Há outras espécies invasoras para as quais a dicotomia biodiversidade/recurso económico pode não ser tão evidente, mas, ainda assim, a questão do custo/benefício no seu controlo está sempre presente. E quem perde, sobretudo em tempos de crise económica a que a Islândia não escapa imune, costuma ser a diversidade local do mar.

O porto de Sandgerði fica a poucas centenas de metros do centro e é para lá que Joana Micael se encaminha agora, carregando um balde e uma faca. Apesar do sol, veste umas calças impermeáveis para qualquer imprevisto na tarefa que vai fazer a seguir, sobretudo, para lidar com as águas frias onde, se deixa as mãos mergulhadas mais do que o que seria habitual, as sente começar a gelar, mesmo neste dia de Verão. Deitada no pontão, de barriga para baixo, puxa alguns cabos, pneus submersos, que impedem que os barcos batam no cais, e placas instaladas pela sua equipa. Em todos se vê uma miríade de pequenos seres vivos agarrados.

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Joana retira pequenos pedaços de alguns deles e coloca-os no balde que carrega e a que juntou já um fundo de água do porto. Vai levá-los para o centro, analisá-los, conservá-los. Aponta para as pequenas criaturas coloridas, enquanto explica que aqui está uma Ciona intestinalis, ali uma Ascidiella aspersa e que aquela é um Botryllus schlosseri. Quase todas estas espécies detectadas por Joana Micael e os colegas do centro têm uma característica preocupante. “Têm a capacidade de se fixar sobre as espécies nativas, cobrem-nas e, por exemplo, nos animais filtradores isto impede-os de exercer a função de filtração, não lhes permite que se alimentem ou que respirem”, diz.

E para que não restem dúvidas sobre o que está a dizer segura entre os dedos algo que acabou de retirar do mar. Por fora, só se vê o revestimento de um botryllus, mas quando a investigadora retira um pouco desta carapaça mole, descobre-se por baixo um mexilhão, que tinha sido totalmente coberto pela espécie invasora. “Esta espécie tem toxicidade e onde ela está, não há mais nada. Só ao lado. Nada cresce por cima dela e o que está por baixo, morre”, conta.

Só ali, explica a bióloga, já foram encontradas sete espécies não-indígenas, após um trabalho iniciado há dois anos anos e que levou Joana Micael e os colegas a percorrerem portos em todo o país. “Algumas destas espécies só em 2020 é que foram identificadas e encontradas cá, não as tínhamos encontrado antes. Fizemos um estudo ao longo do ano, para ver se tinham capacidade de se reproduzir e proliferar e, na realidade, comparando o ciclo reprodutivo destas espécies, com o que se sabe para diferentes latitudes, em que a temperatura é mais elevada, vemos que há uma certa adaptação ao ambiente da Islândia”, refere.

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Mar mais quente potencia proliferação

De facto, os resultados foram uma surpresa. Estando em causa espécies que necessitam de uma temperatura mínima da água do mar de 10, 11 graus Celsius, no Verão, julgava-se que teriam dificuldade em reproduzir-se na Islândia, onde a água andará no limite desses valores. Mas a verdade é que várias espécies não-indígenas foram encontradas em todos os portos monitorizados. “Havia um grande desconhecimento sobre isto. Quando fomos a Vestmannaeyjar, disseram-nos que era impossível estas espécies crescerem ali. Andámos no porto e vimos que está tudo cheio. É preciso muita divulgação”, diz.

A cidade do Sul do país, capital islandesa para a observação turística de papagaios-do-mar, descobriu, assim, que não estava imune à chegada de espécies não-indígenas às suas águas. E a zona de maior risco é mesmo o Sul, onde as temperaturas são um pouco mais elevadas. “Na zona Sudoeste, com a previsão de que a temperatura do mar da Islândia vai aumentar 3 graus ainda neste século, significa que mais espécies vão ter capacidade de se fixar, de se estabelecer e proliferar. Vamos ter espécies que já estão em grande abundância em latitudes menores, mais quentes, a terem capacidade de se expandir para latitudes mais altas, onde a temperatura se começa a assemelhar”, diz.

Para proteger a biodiversidade era preciso travar isto. E há sugestões sobre como o fazer, até porque se sabe como é que elas chegam à Islândia: vão, na sua maioria, agarradas aos cascos dos cargueiros que ali aportam, e também de alguns veleiros. Depois, a frota pesqueira islandesa trata de as disseminar entre os vários portos do país, mesmo aqueles onde as embarcações internacionais não vão. Exigir uma limpeza dos cascos das embarcações assim que se preparam para entrar em águas nacionais islandesas, poderia travar esta disseminação. E os proprietários dos barcos até têm noção de que um casco sujo e coberto por tudo o que a ele se pode agarrar, representa um maior consumo de combustível. A questão - e parece regressar-se sempre aí - é que na balança entre os custos de fazer uma limpeza regular ou arcar com maior consumo de combustível, a balança ainda pende para o segundo prato, e a limpeza fica por fazer. “Há prioridades a nível financeiro em todo o mundo, há uma crise económica, a Islândia está a senti-la e isto não é uma prioridade neste momento”, diz Joana Micael, com um encolher de ombros a revelar desapontamento.

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Uma placa com diversos exemplares de espécies invasoras levada para o centro de investigação Nuno Ferreira Santos
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O caranguejo-das-rochas chegou à Islândia há alguns anos e está a substituir as outras espécies de caranguejos nativos do país Nuno Ferreira Santos

A médio, longo prazo, se as coisas não mudarem, as consequências far-se-ão sentir de forma dura. “Vamos ter uma homogeneização dos oceanos, ou seja, todas as espécies acabam por ser as mesmas, em todos os portos”, explica a bióloga, lembrando que não é nada disso que queremos para um mundo mais saudável.

“Já há pelo menos cinco espécies de ascídias que estão presentes na Islândia, mas que também estão no Sul da Europa, na Argentina, no Pacífico... O mesmo conjunto de espécies já está a ser encontrado um pouco espalhado por todos os ambientes ‘antropogeneizados’, neste caso, sobretudo, portos, em todo o mundo. Isto significa que a diversidade diminui, as espécies nativas deixam de ter espaço e capacidade de competir e acabamos por ter tudo igual, de Norte a Sul. E isto também significa que se há uma praga que mata uma, mata tudo em todo o mundo. É isto”, diz, com um sorriso algo triste, antes de abandonar o porto, a balouçar o balde que transporta algumas amostras do que por ali tem crescido e não devia.

Este trabalho integra um conjunto de reportagens realizadas com o apoio das EEA Grants.

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