Como acontece aos filhos depois de comprarem os seus próprios sapatos

Ao meu lado na carruagem, a minha filha descalça. Insistiu em trazer uns sapatos novos depois de a ter avisado de que seria melhor calçar algo confortável. Conclusão: não aguenta dos sapatos nos pés. Tem dores insuportáveis no calcanhar direito. Agora queixa-se. “Eu avisei-te.” Sinto-me uma mãe chata e velha por ter razão.

Foto
Unsplash

O comboio segue a marcha veloz em direcção ao Sul, não consigo ver a paisagem, lá fora chove, cá dentro os vidros encontram-se opacos e embaciados. Uma sensação pegadiça de melancolia acontece às vezes, normalmente nesta altura do mês. Todos os meses. É a melancolia da descamação das paredes internas do útero.

Convenhamos que não há poesia nenhuma nisto. O casal de velhos atrás de mim trinca batatas fritas de pacote sofregamente, é um som que me irrita desde que me lembro de que há coisas que me enervam. Não sei se existem coisas externas que nos irritem naquela fase da infância da qual não temos memória - normalmente tudo aquilo que vivemos antes dos três anos -, ou se aquilo que nos dá raiva neste período de vida se resume a ter fome, cólicas, dores de crescimento de dentes, a chamada “raivinha dos dentes”, e outras coisas físicas e que causem dor ou desconforto. Não nos lembramos, talvez seja melhor assim.

Ao meu lado na carruagem, a minha filha descalça. Insistiu em trazer uns sapatos novos depois de a ter avisado de que seria melhor calçar algo confortável. Conclusão: não aguenta dos sapatos nos pés. Tem dores insuportáveis no calcanhar direito. Agora queixa-se. “Eu avisei-te.” Sinto-me uma mãe chata e velha por ter razão, por ter antecipado um problema. Preferia a época em que eu própria calçava sapatos desconfortáveis porque me faziam sentir bonita.

Não entendo em que momento nos tornamos adeptos do confortável, em que percebemos que somos aborrecidos e previsíveis e não conseguimos fazer nada para mudar. Parece que deixamos de ter força anímica e emocional para dar conta desse estado enfadonho, desse trambolho monótono em que nos transformámos. O comboio bamboleia e nós dentro dele oscilamos ligeiramente. Pergunto-lhe que música ouve através dos phones que lhe emprestei: “Agora está a dar um anúncio”, responde-me. E acrescenta: “Estou a falar muito alto?” Não está.

Tem a voz tão doce. Irrito-me demasiadas vezes com ela. É uma palradora incansável, capaz de falar sem interrupções durante horas, e eu nem sempre tenho capacidade ou disponibilidade para a ouvir discorrer sobre jogos de computador ou outras coisas que só a si lhe interessam. Entristeço-me com a minha indisponibilidade.

Vai sentada ao meu lado de olhos fechados a ouvir música. Ainda é tão pequena e simultaneamente as suas pernas alcançaram o tamanho das minhas. Comovo-me. Tenho a sensação de que tenho de a proteger sempre, para sempre, mesmo das bolhas que os sapatos bonitos e desconfortáveis fazem nos pés dos inocentes. Protegê-la mesmo à distância, quando vier a não me querer por perto, como acontece aos filhos depois de comprarem os seus próprios sapatos e deixarem de partilhar as suas dores.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários