Manuais Escolares e Kit Tecnológico: As desigualdades no regresso às aulas

Nem todos os alunos que frequentam o ensino privado são economicamente privilegiados, como nem todos os alunos que frequentam o ensino público são carenciados.

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"há aqui uma verdadeira discriminação feita pelo Estado, relativamente a todos os alunos que frequentam o ensino privado" Nelson Garrido/Arquivo

A pouco tempo do regresso às aulas, o tema entre os pais é o dia em que irão comprar o material escolar e levantar os manuais escolares. Porém, este “levantar” não se aplicará aos pais com filhos no ensino privado.

Com efeito, há aqui uma verdadeira discriminação feita pelo Estado (que deveria ser zelador dos direitos de todos os cidadãos independentemente da sua condição social) relativamente a todos os alunos que frequentam o ensino privado.

Ouvimos, insistentemente, propagandeada a expressão “gratuitidade dos manuais para os alunos do ensino obrigatório”, pelos membros do Governo, e, assim de repente, parece que estamos perante uma medida equitativa para todos os alunos que frequentam o ensino obrigatório. Só que não! Esquecem-se, aqueles que a anunciam e a propagandeiam, que a medida abrange só os alunos do ensino público.

Sendo assim, esta medida parece-me ser altamente discriminatória e tenho dúvidas se não será também inconstitucional. Se a esta juntarmos uma outra que disponibiliza um Kit Tecnológico, composto por um computador portátil e respetivo router com Internet grátis, apenas aos alunos que frequentem o ensino obrigatório nas escolas estatais, algumas perguntas devem ser feitas.

Mas antes explicar que, como aliás a própria Provedora de Justiça veio a público admitir quando pediu que o programa fosse alargado aos alunos carenciados do ensino privado e cooperativo, nem todos os alunos que frequentam o ensino privado são economicamente privilegiados, como nem todos os alunos que frequentam o ensino público são carenciados. Esta é a premissa de que normalmente o Governo se esquece quando desenha os programas de apoio.

No entanto, o que este Governo costuma fazer é partir de preconceitos ideológicos, como sucede também na saúde.

No caso da educação, considera que quem frequenta colégios é porque pode e por isso é excluído das respetivas políticas de apoio. Esquece-se de todo o sector social e cooperativo onde os alunos pagam consoante o rendimento do agregado familiar, do sector privado onde os contratos simples são a única forma de muitos alunos o poderem frequentar e também ignora os sacrifícios que muitas famílias fazem para colocarem os filhos no ensino privado, considerando um investimento no futuro.

Esquece e ignora, mas não o devia fazer.

Um aluno, aos olhos do Governo, deverá ser sempre um aluno e, portanto, a medida de diferenciar os que optam pelo ensino privado é discriminatória e até pode ser inconstitucional.

Tenho muita dificuldade em aceitar este tipo de medidas, quando um Governo pretende através de leis e portarias beneficiar uns em detrimento de outros, no caso beneficiar os que optam pelo ensino público em detrimento dos que optam pelo privado.

Fico deveras irritado. Sobretudo quando estas medidas são tomadas por um partido que enche a boca para apregoar os direitos e as igualdades com que o Estado tem de tratar os seus cidadãos, mas depois opta por tomar medidas destas. Ficamos a perceber que, afinal, a igualdade que apregoa é muito relativa.

Perante estas duas medidas em específico queria deixar três perguntas à Senhora Provedora:

1. Será que não considera que estas medidas não são inconstitucionais, uma vez que na realidade há uma efetiva discriminação de uns, aqueles alunos que frequentam as escolas privadas, e o benefício de outros, aqueles alunos que frequentam as escolas públicas? Na realidade, estas medidas sugerem que há cidadãos de primeira e cidadãos de segunda, o que, em minha humilde opinião, contraria o disposto no art.º 13º da CRP, que transcrevo:
“1- Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2- Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”

2. Relativamente à referência que fez aos “alunos carenciados” que frequentam o ensino privado, saberá a Senhora Provedora que essa distinção não é feita ao nível dos alunos que frequentam o ensino público?

3. Finalmente, não faria sentido a Senhora Provedora recomendar à Assembleia da República a correção destas duas medidas?

Desejo que aja em conformidade, para que haja coragem para alargar as medidas a todos os alunos que frequentem o ensino obrigatório.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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