Arquitetura humana da Justiça

O pré-aviso de greve para os dias 1 e 2 de setembro é uma chamada pública de atenção para o funcionário judicial na sua tríplice ação: profissional público, ser humano e ser social.

A reabertura do ano judicial, com a greve dos trabalhadores do judiciário, não é um bom presságio. O Ministério da Justiça tem promovido uma campanha extremamente eficiente de aplicação do Plano de Recuperação e Resiliência e na aposta nos meios tecnológicos e na implementação de ferramentas de apoio à gestão dos tribunais que, apesar de funcionais, não vêm acompanhadas da formação adequada e adaptada às entropias do sistema, como a diminuição dos mapas de pessoal com a utilização do algoritmo e a introdução crescente da inteligência artificial. Estas aplicações tecnológicas vêm sempre acompanhadas de um discurso de reforço de medidas garantes de transparência e independência dos órgãos judiciários perante o poder político, de comissões de estudo, de levantamento das condições de trabalho dos profissionais esbarrando no fundamental, a falta de investimento em todas as suas dimensões: edificado, recursos humanos e formação.

Os profissionais cada vez mais velhos, com condições aqui e ali degradantes, remunerações que não acompanham as exigências, ausência de progressão nas carreiras, envelhecimento sem medidas para a pré-aposentação ou a regulamentação de um regime de aposentação diferenciado, e Administrações insensíveis a todos estes problemas. Nesta reabertura, haverá diligências adiadas, expediente não junto aos processos, despachos por cumprir, não se farão videoconferências nem serviço externo, ou audiências não urgentes, mas salvaguarda-se os direitos liberdades e garantias, a privação da liberdade ou o superior interesse das crianças.

O reduzir pendências e reduzir profissionais é um paradoxo. Sobretudo quando se os desvaloriza, com ritmos de trabalho excessivos, sem compensações, padecendo mais e mais de doenças do foro psicológico, exercendo funções em locais exíguos, com pouco ou nenhum arejamento, onde processos e pessoas e equipamentos se amontoam, edifícios onde chove e é normal os baldes em salas de audiência e água que jorra de tetos e paredes, onde não há papel para tramitação, onde tudo é escasso, dos funcionários ao material.

Na reabertura haverá sim constrangimentos, mesmo tendo os nossos tribunais melhorado. No final de contas, uma meia dúzia de decisores muito satisfeitos com as pendências clamam e exortam os resultados de resolução dos diferendos judiciais e a sua diminuição aparente, esquecendo que parte desses bons resultados se deve à desjudicialização da justiça, ou justiça privada, e em medidas paliativas como na ação executivo ou na lei do inventário, desembocadas em soluções desastrosas.

O cenário desta reabertura dos tribunais não é muito animador. E é tanto pior com o correr dos anos, pelo desgaste, pelas exigências, sem valorização e dignificação de um pilar essencial que são os profissionais. O pré-aviso de greve para os dias 1 e 2 de setembro é uma chamada pública de atenção para o funcionário judicial na sua tríplice ação: profissional público, ser humano e ser social. A única profissão isolada, de todas as outras do judiciário, que viram os seus estatutos socioprofissionais revistos.

É crucial ao desenvolvimento social e económico do país aumentar a confiança dos cidadãos e das empresas na Justiça. E é decisivo que se invista na melhoria do serviço prestado, da imagem pública e da perceção social sobre estes serviços. Uma Justiça eficiente é célere nas decisões e requer funcionamento simplificado, que permita o acesso em condições de igualdade. Mas falar de justiça é também falar dos funcionários judiciais e da sua redução significativa, que põe em causa a saúde da justiça. Em seis anos, assistir-se-á à saída de mais de 2500 profissionais. A eficiência da justiça não existe sem pessoas, sem estas que vão sair e sem outras, novas, a entrar. Nesta reabertura, deixo a pergunta: é a tecnologia que vai servir a Justiça ao cidadão?

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