Médicos devem ter um papel mais activo na luta contra a crise climática

Federação Europeia de Medicina Interna publica artigo numa revista científica posicionando-se publicamente face aos desafios da crise climática e exortando o sector da saúde a agir.

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Plano de contingência no Hospital Curry Cabral, em 2020, no contexto da pandemia Rui Gaudêncio

A indústria da saúde deve assumir um papel activo na luta contra a crise climática, defende um artigo publicado esta quarta-feira na revista científica European Journal of Internal Medicine (EJIM). O documento assinala uma tomada de posição da Federação Europeia de Medicina Interna (FEMI) face aos desafios do clima e propõe diversas recomendações para o sector e para os próprios médicos, não só enquanto classe, mas também como cidadãos.

“Nós, médicos, temos o papel de sermos advogados dos doentes, e por isso temos a obrigação ética de tomar posição publicamente nesta causa. Esta ideia não é original: a Organização Mundial da Saúde (OMS) e sociedades científicas de outros países já fizeram o mesmo”, afirma ao PÚBLICO o médico internista Luís Campos, o primeiro dos 22 autores que assinam o artigo.

Luís Campos recorda que, já em 2017, a Sociedade Portuguesa de Medicina Interna assumiu uma postura pioneira ao declarar que a crise climática é um problema de saúde pública. “Foi a primeira sociedade científica no país a assumir esta posição publicamente e a fazer recomendações nesta matéria”, afirma o presidente da Comissão de Qualidade e Assuntos Profissionais da FEMI que, em 2021, também foi nomeado coordenador da Área dos Cuidados Hospitalares do Grupo de Apoio às Políticas de Saúde do Ministério da Saúde.

Agora, é a vez de a FEMI encorajar os seus membros a arregaçar as mangas no que toca à crise climática. O artigo intitulado A responsabilidade dos médicos em relação à degradação ambiental e às mudanças climáticas, numa tradução livre, apresenta recomendações ao nível nacional, hospitalar, federativo e até pessoal. A FEMI representa cerca de 50.000 internistas e 37 sociedades da Europa e do Médio Oriente.

“Os médicos têm aqui um papel importantíssimo porque as pessoas tendem a ter a opinião destes profissionais em conta. Encorajamo-los não só a sensibilizar a comunidade para os riscos das mudanças climáticas, mas também a ajudar o ministério a produzir orientação [nesse âmbito]”, afirmou Luís Campos ao PÚBLICO.

O que artigo recomenda?

Ao nível nacional, o artigo publicado na European Journal of Internal Medicine recomenda não só as medidas habituais indicadas pela ciência climática – é o caso da redução de gases com efeito estufa e da degradação ambiental, por exemplo –, mas também o investimento em planos de adaptação e mitigação, assim como em investigação para compreendermos melhor os impactes da mudança do clima na saúde humana.

Já no âmbito hospitalar, e da prática clínica, o documento da FEMI defende “uma estratégia e acções por parte do sector da saúde para reduzir a pegada ecológica e colocar em práticas ambientalmente sustentáveis”. Este esforço pode traduzir-se na adopção de diversas medidas, como por exemplo a redução de lixo hospitalar, a eliminação de inaladores de dose calibrada que recorram a clorofluorcarbonetos, a substituição de equipamentos de uso único por opções reutilizáveis ou a introdução de refeições baseadas em vegetais nas cantinas dos hospitais e encontros científicos.

No que toca à FEMI, e às sociedades médicas que representa, o documento refere a importância de a saúde planetária estar presente não só nos encontros e congressos de Medicina Interna, mas também nos cursos médicos de graduação e pós-graduação. O artigo faz ainda o elogio da criação de actividades educacionais e de ferramentas que ajudem os internistas a reduzir o consumo energético e a emissão de gases durante a prática clínica.

Há ainda a necessidade, segundo o artigo, de preparar estes profissionais para cuidar melhor dos pacientes que sofrem as consequências climáticas. Da saúde mental às migrações ou aos conflitos, motivados por eventos climáticos extremos e pela escassez de recursos essenciais à vida, são inúmeros os riscos e contextos de vulnerabilidade a que a população fica exposta com a subida das temperaturas (ver infografia).

Malefícios catastróficos para a saúde

No ano passado, um grupo de cientistas internacionais também publicou um editorial conjunto em mais de 200 revistas científicas dedicadas à saúde pública, incluindo a The Lancet e a BMJ, alertando para os efeitos nefastos que a crise climática terá na vida das pessoas. “A ciência é inequívoca: um aumento global de 1,5 graus Celsius acima da média pré-industrial e a perda contínua de biodiversidade trazem o risco de malefícios catastróficos para a saúde que serão impossíveis de reverter”, alertavam no artigo.

As mudanças climáticas têm impacto “brutal” na saúde humana. A OMS estima que as alterações no clima já custem hoje cerca de 150 mil vidas todos os anos. As ondas de calor e a poluição atmosférica são a face mais óbvia da relação entre saúde e clima, mas há muitas outras esferas do bem-estar humano nas quais a subida da temperatura global e a degradação dos ecossistemas podem tocar.

Peguemos o exemplo das doenças infecciosas emergentes em humanos que são de origem zoonótica, ou seja, doenças animais que são transmitidas a pessoas. Tanto a desflorestação como a intensificação da actividade agro-pecuária, em grande parte para dar resposta à maior procura de proteína animal, são factores que contribuem para o surgimento de novas pandemias. São perturbações no ambiente que favorecem a emergência de novos agentes patogénicos.

A ocorrência de novas pandemias é apenas um exemplo dos riscos que a degradação ambiental e a crise climática colocam para a saúde humana. Entre 2030 e 2050, a OMS prevê que as alterações climáticas provoquem cerca de 250 mil mortes adicionais por ano com resultado da malnutrição, malária, diarreia e ondas de calor. E, por isso mesmo, o sector da saúde desempenha um papel crucial não só para dar resposta aos desafios futuros, mas também para mitigar as consequências da mudança do clima.