Morrer bem importa, aos que vão e aos que ficam

Na eventualidade de ficar demasiado doente para falar por mim mesma, quem deverá tomar decisões ou falar sobre as coisas importantes para mim?

Foto
O preenchimento do testamento vital é um processo rápido Elia Pellegrini

Morrer bem importa, aos que vão e aos que ficam. Num contexto em que menos de 1% dos portugueses têm testemunho vital, será oportuno pensar: na eventualidade de ficar demasiado doente para falar por mim mesma, quem deverá tomar decisões ou falar sobre as coisas importantes para mim?

Não me refiro à eutanásia, isso seria uma simplificação absurda. Refiro-me à escolha sobre querer ou não uma vida artificialmente prolongada quando não se tem hipóteses de viver de forma autónoma. Esta escolha, independentemente da opinião de cada um sobre a morte medicamente assistida, é possível e é importante.

Escolher é bom. Tomar decisões reforça a nossa auto-estima e contribui para a nossa saúde mental e bem-estar. E é um exercício de liberdade. Não iríamos prescindir do nosso direito a escolher uma profissão ou o nome dos nossos filhos. Lutámos por garantir e manter a liberdade de escolher quantos filhos temos e com quem casamos. Podemos hoje exercer a nossa liberdade, apesar de condicionada, ao escolher o que nos acontece quando não podemos responder por nós mesmos.

Muitos dos que enfrentam sérias ameaças à sua qualidade de vida, confiam aos médicos as suas decisões. Porque decidir pode ser muito difícil. Há assuntos em que não nos consideramos conhecedores o suficiente, ou em que temos medo de decidir.

Proponho uma reflexão.

Hoje vivemos mais tempo, e melhor. No último século, a idade mínima para trabalhar e a escolaridade obrigatória aumentaram, somos jovens mais tempo. Mas a longevidade também significa que vivemos mais tempo de velhice, período em que a qualidade de vida tende a piorar. Assistimos, hoje, ao aumento dos casos e da duração de tempo em que a sustentação da vida requer cuidados de terceiros.

Os avanços na medicina e na tecnologia permitem melhorar a qualidade de vida, e permitem que esta se prolongue, mesmo que artificialmente, por via de máquinas e medicamentos. É nesta situação, ligada à nossa autonomia, ou falta dela, que vejo o poder da tecnologia para desumanizar a forma como vivemos e morremos.

Se os centros de saúde e os hospitais são os melhores sítios onde encontrar tratamento, não são necessariamente os melhores onde morrer. Afinal, a função de um neurologista ou de um cardiologista é focada no tratamento.

Em resposta à pergunta feita nas primeiras linhas neste texto: sabemos que quando não decidimos alguém vai decidir por nós. Em situações intratáveis, passar a nossa decisão para outros, ou para a responsabilidade dos profissionais de saúde a quem cabe tratar, pode ter resultados negativos, pode levar ao sofrimento prolongado, nosso, e da nossa família.

Por ter perdido uma amiga jovem, e por conhecer de perto a realidade de um lar de idosos, procurei saber como exercer o meu direito relativamente a estas situações inesperadas. Encontrei e fi-lo. O preenchimento do testamento vital é um processo rápido que estabelece, através de um documento simples, em que condições o próprio entende que a vida deve ou não ser prolongada artificialmente quando, e somente quando, já não se pode viver de forma autónoma.

Os debates actuais sobre os modelos de assistência ao envelhecimento e à doença terminal, como o da eutanásia, são essenciais e pertinentes. Mas não podem ser feitos só com a participação de peritos em saúde e em ética. Precisam da sua participação. Porque não se discute a escolha mas sim, o poder escolher.

E, como suponho que concordem, escolher é bom. Para nós e para os outros.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários