Exportação cultural

Quem esgrime o fantasma da apropriação cultural acredita, em primeiro lugar, na homogeneidade cultural. E confina a guetos as diversas matrizes culturais, ou raciais, ou étnicas.

Corria o ano 2000 quando, em Oxford Street, Londres, vi jovens japoneses (ou de outra nacionalidade asiática – que seja perdoada a indeterminação pelos mecenas da patrulha dos bons costumes) com cabelos pintados de cores variegadas. Presumi que fosse um modismo regional e não levantei outras questões. Questões que, eventualmente, seriam levantadas se o facto tivesse sido testemunhado vinte anos mais tarde, sob o ângulo de análise de uma antropologia cultural reinventada. Perguntar-se-ia se seria admissível os jovens japoneses fazerem apropriação cultural de algo que era (na altura) típico dos jovens ocidentais. Não o fiz na altura (a questão não tinha nascido) e não o faria hoje.

Podemos dar um salto no tempo, até à atualidade. Perto do sítio onde vivo há uma comunidade de angolanos abastados. Antes que um zeloso membro da patrulha que nos tutela arremesse um objeto argumentativo contundente na minha direção, quero que fique estabelecido que os angolanos têm o direito a subir na vida como acontece com qualquer pessoa, independentemente de nacionalidade, raça, credo ou orientação sexual (ou, vá lá, ideologia). Não vou indagar sobre a origem da fortuna – e digo-o sem qualquer laivo de ironia e sem agendas escondidas, pois o que é do foro da suspeita (de tantos que denunciam os oligarcas angolanos) não passa desse foro.

Os adolescentes dessa comunidade só usam roupas e calçado de marcas luxuosas. Outra vez, para não ficar à mercê dos que quiserem atirar contra mim o opróbrio do racismo estrutural, digo-o com toda a clareza: os adolescentes em apreço têm o direito de vestir e calçar marcas dispendiosas. E não será o facto de envergarem vestuário e calçado caros, que não tenho no meu guarda-roupa, que irá detonar a inveja. (Não contribuo para as marcas registadas que sobem aos tops da moda.) Ora, segundo os delatores da apropriação cultural, a pergunta que se impõe é a seguinte: não estarão esses adolescentes a vestir o avesso da sua idiossincrasia ao cederem perante a sedução, estética ou meramente jactante (consoante as interpretações), de marcas que são um símbolo do mundo ocidental e do capitalismo? É que se uma branca não pode usar rastas pelo pecado capital da apropriação cultural, não se aplicará a mesma sentença aos adolescentes angolanos que ficam extasiados com roupa e calçado e adereços de marcas de luxo?

(Concedo: os exemplos atrás apresentados são representações excessivas dos argumentos que interessa esgrimir quando as acusações de apropriação cultural assomam à superfície. São exemplos, apenas, usados contra a imperatividade dos que se opõem ao que consideram ser casos de apropriação cultural. Para exemplos radicais, exemplos radicais com uns pós de excesso, para apimentar a discussão.)

Incomoda-me a posição em que se colocam os críticos da soi-disante apropriação cultural. Aceito os pressupostos que alimentam o seu argumentário. Posso não concordar com eles, mas aceito-os como o mar de fundo em que laboram. Não consigo aceitar o demais: os imperativos categóricos denotativos de um entendimento enviesado de liberdade e os resultados da linha argumentativa. Eis porquê.

Por um lado, a forma como articulam os argumentos é uma expressão de liberdade enviesada. Um branco não pode usar rastas porque se apropria de um elemento cultural que não corresponde à sua cultura (como se fosse possível arregimentar brancos e negros numa homogeneidade cultural...). Esse branco perpetua o racismo sistémico. E ainda que o branco que decidiu ornamentar o cabelo com rastas alegue, em sua defesa, que é uma homenagem a um negro (ou à negritude), o argumento é recusado porque os supremos julgadores são insensíveis à manifestação de vontade do infame branco e adivinham o que vai no íntimo do branco – o racismo dissimulado. Chamam mentiroso ao branco, num julgamento sumário e com irrelevância do contraditório. Para além de atropelarem a vontade e a liberdade de quem acusam, os zelotas que combatem a infâmia da apropriação cultural têm dotes de adivinhação para intuírem estados de alma alheios.

Por outro lado, as consequências desta cruzada remetem para um cenário datado e paradoxal. Quem esgrime o fantasma da apropriação cultural acredita, em primeiro lugar, na homogeneidade cultural. Segundo, confinam a guetos as diversas matrizes culturais, ou raciais, ou étnicas. A segregação não é consentânea com a miscigenação cultural que é um traço indelével do tempo presente. (Sosseguem os cruzados anti-apropriação cultural: não evoco os descobrimentos portugueses ao mencionar a miscigenação cultural.) É uma mundividência datada, porque negada pela ciência e pela simples observação.

E é uma mundividência paradoxal, porque – independentemente da grelha pela qual seja lida a globalização das gentes – acantonar culturalmente determinados grupos trava o conhecimento do outro. As culturas ficam mais ricas quando se abrem à influência de outras culturas. Não tinha estes ativistas na conta de militantes do nacionalismo serôdio. Ou os que patrocinam a causa que se opõe à apropriação cultural dão para o mesmo peditório dos que afixaram uma faixa num viaduto no Porto com a seguinte proclamação: “salvem os povos nativos”? Às vezes, e cada vez mais, os extremos não se reprimem um ao outro.

Toda esta discussão está contaminada à partida. Até pela categoria operativa usada. Em vez de se falar de apropriação cultural, com a carga negativa associada, dever-se-ia rebater esta categoria através da lógica da exportação cultural. Exportação seria denotativo da fusão de diferentes culturas e sempre na condição de ser um processo volitivo dos agentes envolvidos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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