O aquário
A minha memória é uma jukebox involuntária que dispara um refrão de repente.
“Há pessoas que encontram prazer na jardinagem ou em fazer cerâmica.” Acenei em silêncio como quem diz que compreende o que acabou de ouvir, e sei o quanto me preencheria a arte da jardinagem, mas pensei na música como sendo capaz de me fazer vibrar com o corpo todo, reagindo massivamente às adversidades.
Tenho feito viagens de muitas horas a ouvir canções. Às vezes só uma, uma única mesmo, a que se repete como se trouxesse um tempo de volta. Eu nem sei qual é esse tempo, mas idealizo-o na minha cabeça, reconstruo-o, junto-lhe a pessoa que sou agora, e a soma parece-me perfeita. Já não tenho muito do que vivi, já não sou a mesma que o viveu, mas a soma de tudo isto traz-me uma força como se, por momentos, eu fosse uma super-heroína investida de poderes que nasceram da escuta recorrente da música.
Na infância, eu e o meu irmão fomos aprender piano com a Aldinha. A Aldinha era uma rapariga morena com óculos, filha da dona Lídia, sobrinha da dona Palmira, mulher do senhor Carlos, homem a quem comprei a minha primeira bicicleta. É impressionante o mapa de nomes e de casas que ainda abro diante de mim. Passo junto às portas que tantas vezes vi e onde algumas vezes entrei e digo (como se fosse um jogo a que me proponho solitariamente) o nome de cada um dos seus proprietários.
Tenho saudades de ver o senhor Paulino, o alfaiate que cortava os fatos risca de giz com um rigor que assustava. Severo, o senhor Paulino. Na montra que ainda existe, imagino a filha muito terna, a Manuela, nos acabamentos, enquanto a mãe passava a ferro com cautela perante o olhar de repreensão do senhor Paulino. A mão dele era certeira: no corte e na forma como puxava dos tecidos convencendo os clientes. O meu pai foi um deles. A montra ainda lá está. Um aquário que me devolve a infância. Um rádio tocava as canções da altura. Talvez Rita Coolidge cantasse a versão com que ascendeu aos tops: We’re All Alone. Talvez me sentisse muito sozinha na altura. Os amigos viriam muito mais tarde, mas eu já tinha as canções – sempre as tive.
Voltemos à Aldinha. Perco-me no caminho das memórias porque são muitas. Senti um entusiasmo desmedido quando os meus pais aceitaram que eu e o meu irmão frequentássemos as aulas dela, mas muito cedo percebi que eu não seria a que se senta ao piano, mas a que fica deleitada a ouvi-lo. Há tanta arte em tocar, mas é uma arte saber ouvir. Eu continuei fiel à pauta dos outros.
As canções resgatam vidas ao pântano aonde é fácil ir parar: uma desilusão amorosa, um amigo que nos feriu, alguém doente que amamos, ou ainda uma tristeza sem razão que se acomodou de véspera e que quando acordamos ainda está lá. Nós não podemos tocar na tristeza, mas, muitas vezes, sabemos que a ferida é funda e vai demorar algum tempo a fechar. Na dúvida, invento prescrições fantasiosas de canções para ouvir sem parar. E ouço – como quem faz jardinagem, como quem se pica na roseira-brava e continua a cantar, porque a vida é este desafio de saber rir em cima de uma dor instalada. Agora que penso melhor, talvez a vida seja um permanente duelo: nós estamos sempre a lutar, nem que seja contra a morte, mesmo quando não pensamos nela. Devíamos chegar à noite e, como quem dá graças à mesa, pensar que ganhámos mais um dia. Um duelo permanente, insistente, para que, afinal de contas, tudo isto valha a pena.
Os meus dias valem cada segundo porque são feitos de canções. Fiz-me de canções. A minha memória é uma jukebox involuntária que dispara um refrão de repente.
Um dia, vou dedicar-me à jardinagem com as canções a ecoar (como fazem os homens no campo ou nos andaimes).
Para já, tenho jardins suspensos enquanto abro delicadamente a tampa partida do meu gira-discos.
Uma canção e serei salva.