Para quando a transparência na publicação integral das decisões judiciais em Portugal?

Mesmo esta publicitação parcial e opaca da jurisprudência nacional só abrange as decisões dos tribunais superiores – sobre as decisões dos tribunais de primeira instância, nada existe.

Em Portugal, a possibilidade de conhecer e aceder integralmente às decisões dos tribunais permanece adiada, frustrando-se, assim, tanto a concretização do direito à informação jurídica e acesso ao direito, quanto o princípio da publicidade das decisões judiciais que decorre, não só do quadro nacional constitucional e legal, mas também de vários instrumentos jurídicos supranacionais.

Conhecer as decisões dos tribunais é tão essencial para a efectivação do direito constitucional à informação jurídica quanto conhecer, por exemplo, a legislação e regulamentação diariamente emanada das autoridades competentes para reger um sem-fim de situações da vida em sociedade.

O défice de conhecimento das decisões judiciais, para além da desconformidade jurídica em que se traduz, é um problema que acarreta consequências nefastas que se retroalimentam negativamente e se repercutem em diversos domínios, desde o interior do sistema jurídico estritamente considerado até à esfera de autonomia de cada um de nós.

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Nelson Garrido

Os autores deste texto reuniram-se recentemente no âmbito de uma conferência internacional que teve lugar no ISCTE, em Lisboa (o Global Meeting on Law & Society) – numa sessão promovida pelo comité local de organização da conferência em parceria com a NOVA School of Law e o seu centro de investigação CEDIS –, tendo-se debruçado sobre as principais dimensões que são afectadas pela falta de publicação integral da jurisprudência nacional, identificando um conjunto de consequências negativas, cujas linhas gerais importa partilhar.

É importante começar por explicitar as bases factuais desta questão, pois certamente o leitor menos familiarizado com o sistema judicial não saberá que, em Portugal, só são publicadas algumas decisões judiciais.

O Tribunal Constitucional publica todas as suas decisões (finais) no seu site, o Supremo Tribunal de Justiça apenas publica a totalidade das que profere desde 1 de Janeiro de 2020 e há algumas decisões de outros tribunais que são obrigatoriamente publicadas em Diário da República, mas quanto às demais (a enorme maioria) a decisão sobre a sua publicitação é deixada aos próprios tribunais, sem critérios (publicados ou conhecidos por qualquer forma) e por meio de procedimentos não escrutináveis que decorrem à porta fechada de comissões internas de selecção de jurisprudência para publicação.

Mais: quando as decisões escolhidas chegam ao público –­­ através das bases de dados do IGFEJ que são disponibilizadas online – a informação que as acompanha e o modo como são comunicadas colocam enormes desafios ao utilizador, que vão desde a variabilidade dos metadados ao total desconhecimento sobre a cadência temporal de alimentação das bases de dados e critérios de indexação para pesquisa. E note-se que esta publicitação parcial e opaca da jurisprudência nacional só abrange as decisões dos tribunais superiores sobre as decisões dos tribunais de primeira instância, nada existe.

Este estado de coisas é, desde logo, um entrave para o próprio desenvolvimento do sistema jurídico, seja porque limita a dinâmica de construção do ordenamento que é necessariamente baseada numa constante interacção entre discursos jurídicos, seja porque limita a acção dos operadores internos, inclusive ao nível do exercício de direitos processuais. É evidente que o prejuízo assim causado se repercute directamente na agência dos cidadãos e na efectivação das várias funções que a sociedade atribui ao direito. A ausência de conhecimento sobre os sentidos interpretativos (prevalecentes ou divergentes) adoptados pelos tribunais sobre determinada matéria ou situação diminui também drasticamente as possibilidades da previsibilidade das soluções de controvérsias futuras, afectando não só o tipo e volume de litigância na sociedade, mas também a segurança jurídica que se quer associada à concretização e realização do direito em todas as esferas do quotidiano.

Os efeitos nefastos da limitação ao acesso às decisões dos nossos tribunais estendem-se, também, de modo muito vincado às possibilidades de levar a cabo projectos de investigação académica (e.g., jurídica, sociojurídica, histórica, económica) ou de suporte a políticas públicas utilizando a jurisprudência como meio de conhecimento. Sem acesso fidedigno às fontes não é possível extrair dados em que possam assentar observações, descrições e diagnósticos credíveis, representativos e com valor epistémico suficientemente robusto para fundamentar uma monitorização do sistema jurídico ou para ancorar eventuais propostas normativas sobre temas socialmente relevantes e que se encontrem reflectidos nas decisões dos tribunais.

As insuficiências apontadas constituem, igualmente, óbices para os avanços tecnológicos dos sistemas de administração da justiça (e.g. com base em inteligência artificial), que Portugal não poderá acompanhar, pois sem dados, os algoritmos simplesmente não funcionam.

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Nelson Garrido

O problema do acesso à jurisprudência é, em última análise, expressão de um contexto cultural pouco dado à transparência, à difusão livre de informação e ao escrutínio colectivo. Mas dá-se o caso de, no domínio do direito, não nos podermos dar ao luxo de prescindir desses mecanismos de controlo e responsabilização se quisermos continuamente o reforço da legitimidade e qualidade do fenómeno jurídico em contexto democrático. É esse escrutínio, interno e externo do ponto de vista do sistema jurídico, que a falta de acesso integral ao acervo das decisões dos nossos tribunais inviabiliza aos operadores, observadores e destinatários do direito.

Não havendo hoje obstáculos técnicos à recolha e disponibilização integral das decisões em formato digital e sendo perfeitamente possível assegurar a protecção de dados sensíveis e pessoais, importa colocar no espaço público esta discussão e questionar os responsáveis políticos e judiciais –ministra da Justiça, procuradora-geral da República, conselhos superiores – sobre o que efectivamente impede a sua concretização, para além do já conhecido e referido contexto cultural.

António Granado (jornalista)

Francisco Teixeira da Mota (advogado)

Higina Castelo (juíza desembargadora)

Margarida Lima Rego (professora universitária)

Nuno Garoupa (professor universitário)

Patrícia André (docente e investigadora)

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