Câmara de Lisboa autorizou festa em espaço florestal durante a situação de alerta de incêndios. Mas houve mais

Evento realizou-se na Tapada da Ajuda, um dos locais onde não deveria haver eventos devido ao risco de incêndio. No entanto, vereador deu luz verde ao pedido do DJ Kamala para a realização da sua festa privada. Bloco questiona continuidade de Ângelo Pereira.

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Evento realizou-se na Tapada da Ajuda DR

A Câmara de Lisboa, pelo seu vereador Ângelo Pereira, autorizou a realização de um evento privado na Tapada da Ajuda, ignorando um despacho do Governo que prorrogava o estado de alerta até 21 de Julho, devido ao risco elevado de incêndio. A notícia foi avançada esta sexta-feira pelo semanário Expresso, e, segundo apurou o PÚBLICO, esta não terá sido a única excepção concedida.

Tratou-se de um festa privada do conhecido DJ Kamala, que poucos minutos depois da meia-noite do dia 20 de Julho enviou um email a Ângelo Pereira, que tem o pelouro da Protecção Civil, e a vários elementos das direcções municipais da Protecção Civil e do Ambiente, para a Polícia Municipal e para o Regimento de Sapadores Bombeiros com um “pedido de excepção”.

O músico pretendia que a autarquia lhe concedesse uma autorização excepcional para a sua festa “Kamala 360”, onde só entra quem tem convite. E argumentava que se tratava de uma festa com cerca de 300 a 400 pessoas, com todos os serviços necessários já contratados, pelo que o cancelamento traria “sérios contratempos e prejuízo”. O DJ argumentava ainda que a festa seria ao final da tarde e noite, fora do horário de calor, acreditando “não ser um foco de preocupação”.

A situação de alerta que estava então em vigor determinava que o “acesso, circulação e permanência no interior dos espaços florestais, previamente definidos nos planos municipais de defesa da floresta contra incêndios” continuavam proibidos.

Na capital, os eventos públicos ou privados que se realizassem nos espaços florestais de Monsanto, da Tapada das Necessidades, da Tapada da Ajuda, do Parque Silva Porto, do Parque dos Moinhos de Santana, do Parque da Madre de Deus, do Parque do Vale do Silencio, da Encosta da Calçada de Carriche, do Parque Central de Chelas, do Parque José Simões Ferreira (de Alvalade), no Parque do Vale Fundão, na Quinta das Conchas e Lilases e no Parque da Bela Vista seriam cancelados.

Falta de licenças

No que respeita à festa do DJ Kamala, uma troca de emails durante a manhã de 20 de Julho revela que os serviços da autarquia ainda levantaram dúvidas, nomeadamente pela falta de licenciamento. Por se tratar de um evento com um “número muito considerável de participantes (300/400 pessoas)”, obrigaria a uma proposta de “licenciamento tipo ‘recinto improvisado'”, com a entrega de documentação como a licença especial de ruído, seguros, planos de evacuação, vários termos de responsabilidade, o qual teria de ser “criteriosamente” avaliado.

No mesmo email, uma técnica do município dava nota ainda de que para eventos semelhantes, em anos anteriores, como o Brunch Elektronik em 2017 e 2018, foi a Junta Freguesia de Alcântara que o licenciou. E lembrou que a edição do Brunch Elektronik, agendada para o passado dia 17 de Julho, fora cancelada em virtude da decisão do Governo perante o risco de incêndio.

Sobre o evento em apreço, a junta disse nada saber, assim como a Divisão de Gestão de Espaço Público e Publicidade. Outro técnico confirmaria, num outro email, que não havia qualquer licenciamento em curso.

A direcção municipal do Ambiente defendeu, porém, que o evento fosse realizado, argumentando que as temperaturas previstas não comportariam um “risco elevado” de incêndio rural. Na sequência desse email, o vereador Ângelo Pereira autorizou a realização do evento.

Ao Expresso, o presidente do Instituto Superior de Agronomia (ISA) — que gere os eventos que acontecem na Tapada –, António Brito, disse que exigiu uma autorização escrita da Câmara de Lisboa e que a recebeu. E afirmou que “bombeiros, polícia e protecção civil estiveram no local” e sublinhou que as condições “não traduziam um risco elevado de incêndio”.

Numa nota enviada aos jornalistas, o gabinete do vereador Ângelo Pereira notou que estes eventos “não dependem da autorização da Câmara de Lisboa”, repetindo o que o autarca já dissera ao Expresso. E que, “à semelhança das excepções concedidas para a realização de outros eventos como casamentos e baptizados e restauração, também este evento cumpriu todos os requisitos de segurança”. O que confirma que mais eventos terão sido autorizados, sem revelar contudo quantos e em que locais.

A nota refere ainda que “a emissão de parecer para a realização do evento foi precedida de uma visita conjunta entre o Instituto Superior de Agronomia, a organização do evento e dos serviços municipais ao espaço”. E que que os Serviços Municipais da Protecção Civil determinaram “a não existência de risco elevado de incêndio rural”, uma vez que “a previsão de temperaturas para o dia em causa que não se encontrava dentro do parâmetro de emissão de aviso amarelo para tempo quente”.

O PÚBLICO questionou ainda o Ministério dos Administração Interna para perceber se o município poderia autorizar uma excepção ao decreto em vigor, aguardando ainda uma resposta.

Oposição questiona Moedas

Para os vereadores do PS, é “grave” que esta autorização tenha sido concedida num tempo de situação de alerta, que “em lado algum autoriza vereadores a ditarem excepções ao seu cumprimento”. “O facto de a câmara ter invocado o decreto em causa para proibir eventos no mesmo espaço só adensa a sensação de estranheza com a forma expedita como esta autorização foi concedida”, escrevem os socialistas.

Apontam ainda a falta de “elementos que os Serviços Municipais consideraram imprescindíveis para a realização de um evento com aquelas características (licença de recinto improvisado, licença especial de ruído, seguros, termos de responsabilidade, planos de segurança, pareceres internos e a entidades externas, etc.), que o vereador Ângelo Pereira parece não ter querido solicitar”. E notam também “o menosprezo para com as freguesias que não foram chamadas a pronunciar-se nem a emitir parecer, o que é bem ilustrativo de que o diálogo dos ‘Novos Tempos’ vai tendo voz, mas quando é preciso passar das palavras aos actos deixa sempre muito a desejar”.

O Bloco de Esquerda, pela vereadora Beatriz Gomes Dias, considerou igualmente “muito grave” a autorização concedida. Por isso, o partido enviou na manhã desta sexta-feira um requerimento ao presidente da câmara, Carlos Moedas, “exigindo esclarecimentos sobre as autorizações realizadas em tempo recorde ao ‘pedido de excepção’ do promotor da festa”.

E quer saber ainda se Moedas considera que Ângelo Pereira mantém condições para se manter no executivo como vereador da Protecção Civil.

“É chocante que em pleno estado de alerta e com o país a braços com violentos incêndios florestais, a câmara municipal tenha posto em risco o Parque Florestal de Monsanto, ignorando o estado de alerta decretado pelo Governo”, notam os bloquistas em comunicado.

Também os vereadores do PCP questionaram Carlos Moedas sobre o sucedido, sublinhando que é necessário que seja clarificada a razão que justificou a realização deste evento. João Ferreira e Ana Jara querem saber se os promotores tinham todo o licenciamento necessário e quantos eventos foram cancelados e autorizados durante os períodos de contingência e de alerta.

O Livre de Rui Tavares também já enviou um pedido de esclarecimentos e diz que “pretende o esclarecimento da situação de forma transparente e aberta pelo executivo com pelouros, nomeadamente quais as razões para esta autorização excepcional e qual o sentido dos pareceres emitidos”, bem como as razões pelas quais a Junta de Freguesia da Alcântara não foi envolvida no processo de autorização.

Notícia actualizada às 19h11: Acrescenta notas do Livre e do PS

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