O momento errado

O humor é uma dádiva. Nunca devia ficar fora de uma Igreja que apregoa a bondade e o amor pelo outro.

Foto
"Hoje, continuo a ver a Igreja com pouca capacidade para acolher a diferença e ter a generosidade do humor" Maria Inês

Tinha mais de três anos quando fui baptizada. Está ali uma fotografia que me exibe de saia plissada branca pelo joelho e uma camisola de malha, branca também, com uma risquinha de cor indefinida na manga. Uma pequena cheerleader com joelhos que tocavam um no outro como se fossem os melhores amigos. A fotografia tem a vantagem de me levar a viajar no tempo, fazendo eu essa reconstituição.

Ao meu baptizado compareceram meia dúzia de pessoas. O momento, adiado no tempo por diversos motivos, não deixava de ser solene, mas viria a ficar inscrito na minha memória por uma outra razão.

Na altura de me inclinarem na pia baptismal, eu, demasiado nova para perceber o ritual, mas já dotada de vocabulário extenso, alertei o padre para o facto de ter duas picadas de melga exactamente no sítio onde a água era derramada. Talvez não me lembrasse do episódio com tanta clareza se não fosse pelo que ouvi do outro lado: nada, nem uma palavra, só o gotejar da água que me limpava do pecado original mas não atenuava a picada fatal das melgas. Um silêncio perturbador tornou ainda mais estranho o facto de eu estar ali com a minha saia plissada e os joelhos mais unidos do que os estados da América. Nem uma palavra, muito menos um sorriso.

Não ter a capacidade de saber brincar num momento destes deixou-me estarrecida – embora na altura eu ainda não soubesse o que quer dizer esta palavra, estarrecida é o termo certo. Nesse momento confrangedor, a igreja tornou-se ainda maior e mais fria, e eu quis que tudo aquilo acabasse muito rapidamente. Nunca me lembrei de perguntar aos meus pais se a seguir houve confraternização. Eu estava ensimesmada com o que ali tinha acontecido. Foram vinte anos a seguir para aprender a palavra “ensimesmada”…

Naquele dia, não me lembro de ninguém ter falado em pecado original. Isso também aprendi mais tarde. A falta de humor do homem da batina bateu-me muito mais. O respeito não se consegue pela austeridade ou pelo ar severo com que se fita uma miúda de três anos que estava muitíssimo mais preocupada com o facto de as borbulhas serem visíveis.

O humor é uma dádiva. Nunca devia ficar fora de uma Igreja que apregoa a bondade e o amor pelo outro.

A fotografia lembra-me esse momento, mas também o facto de eu ali com o cabelo muito curto estar sempre a ser confundida com um rapaz. Perguntavam insistentemente à minha mãe se eu não seria um menino, o que, vistas as coisas assim à distância, faria dela uma pessoa estranha que se divertia a vestir aquela criança com uma saia plissada. Estranha ou, então, à frente do seu tempo. Maldita inocência que já lá vai, e tudo o que vemos agora é escrutinado sem dó.

A fotografia está na parede. Eu orgulhosa da minha saia plissada que não chegava para cobrir os joelhos, as melgas como protagonistas e um cabelo curto que confundia os desatentos.

Anos depois, quando fui para a secundária, voltei a cortar o cabelo muito curto, e novamente fui confundida com um rapazinho triste que seguia sozinho no autocarro para a escola cheia de pavilhões que faziam eco.

Confundirem-me com um rapaz magoava-me muito. Não tenho explicação para isso, a não ser, talvez, por gostar muito de ser mulher – naquela época, menina.

Hoje, continuo a ver a Igreja com pouca capacidade para acolher a diferença e ter a generosidade do humor. Tudo na Igreja precisa de ser trabalhado: os erros graves do passado, a forma como se recebe o presente e se prepara o futuro – com amor.

As melgas, é uma certeza, ficam para vida. O cabelo curto é uma escolha. Hoje já não me importaria com confusões, mas gosto muito de ser mulher, esta mulher que teve sempre a capacidade de ter palavras certas, mesmo que fosse no momento errado.

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